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MISTÉRIO EM PLATÔNIA

Foto do escritor: Hatsuo FukudaHatsuo Fukuda

Atualizado: 24 de fev.

Uma aventura do delegado Plínio.




CAPÍTULO 1



MANHÃ DE DOMINGO EM PLATÔNIA


De como o delegado recém-chegado à cidade descobre uma das atrações turísticas da pacífica cidade de Platônia.


Enquanto o delegado pensava se faria a barba, tocou o telefone. Edevaldo, o escrivão, de plantão, anunciando que haviam descoberto um corpo na margem do rio. Como ele tinha acabado de chegar na cidade, Edevaldo perguntou se queria ir ao local. Olhando no espelho os olhos fundos, desistiu de fazer a barba e foi tomar café. O bufê do hotel consistia em café, leite, suco de laranja, pão, presunto, queijo. Algumas fatias de melão e melancia para os adeptos da vida saudável. Um bolo de laranja e um cuque, de boa aparência. Comeu um pão com presunto e foi para a frente do hotel fumar e tomar um café ruim.


Edevaldo era um policial jovem e entusiasmado. O delegado anterior fizera muitos elogios ao seu trabalho. Tomava conta da delegacia e não criava problemas. O serviço estava em dia. O carro chegou, um carro descaracterizado – o outro estava no conserto – e o recém-chegado foi apresentado a um investigador, Leonardo, ambos sorridentes para uma manhã de domingo ensolarado. Não havia nuvens e a temperatura era de 30° à sombra. Naquela cidade sempre fazia sol. Um tédio. Estavam contentes em sair do ambiente opressivo da delegacia e passear no Rio Paraná.


Havia um carro da PM no local e uma camionete. Três homens debaixo de uma árvore se abrigavam do sol forte das dez horas. Os três policiais subiram por um caminho até o alto do barranco, onde, sentado à beira de um flamboyant, um homem observava o rio majestoso a sua frente. O imenso flamboyant se destacava na beira do morro, vigiando o rio. Poderia ter sido um suicídio, não fossem os cinco furos no peito e a cara estraçalhada por um tiro. Um rastro de sangue levava a uma moita onde ele deve ter sido atingido e a seguir arrastado até a árvore, onde foi caprichosamente sentado de frente para o rio. Ele havia sangrado abundantemente antes de morrer e estava vivo enquanto era arrastado até a árvore, onde fora dado o tiro no rosto, a julgar pelos vestígios no tronco da árvore e no chão. Apesar dos seis tiros o morto tivera tempo de ver a placidez do rio antes de morrer. O zumbido de moscas varejeiras e o cheiro de sangue estavam no ar. O forte calor da região acelerara a decomposição. O policial sentiu um desgosto ao ver que o local tinha sido pisoteado pelos pescadores. Talvez houvesse algum indício para ser investigado, mas pouco havia sobrado da cena do crime.


Os três homens tinham ido ao local para pescar. Subiram para montar o acampamento e encontraram o cadáver. Uma das camionetes voltou para avisar a polícia e ainda não tinha retornado. Não sabiam de nada, ninguém conhecia o morto. Eram conhecidos do escrivão. Todos se conheciam na cidade, ao que parece. Só não conheciam o morto.


Ele circulou pelas redondezas. Havia restos de duas fogueiras, a área limpa de mato, mostrando que eram usadas habitualmente, por pescadores ou jovens que preferiam o local ao motel da cidade. Havia uma bela vista, ótima para namorar nas noites de sábado, mas o maior atrativo era a discrição do local. Para se chegar ali, era necessário conhecer a trilha, que começava um pouco depois da estradinha de terra batida.


Como o local era usado para passagem de contrabando e drogas, tudo indicava ser um acerto de contas entre quadrilhas; um crime que nunca seria resolvido. Havia a delicadeza do homem ter sido acomodado em frente ao rio, debaixo do flamboyant, mas isso era um detalhe. Acerto de contas entre quadrilhas, vítima desconhecida, autoria desconhecida; caso encerrado, comentou para Edevaldo, que relaxou ao ouvir o comentário. Ele não tinha tempo para cuidar de casos complicados.


Platônia era fim de linha; para o novo delegado, um intervalo até que o esquecessem, segundo o delegado regional. Não faria diferença: o salário era o mesmo, o serviço era menor, mais tempo para pensar na vida. Havia 31 presos na delegacia, nenhum perigoso, para eles, pelo menos. Havia um assassino do PCC, mas era profissional e estava aguardando um habeas corpus para voltar à ativa. Enquanto isso, se fazia de morto. Edevaldo, o escrivão, cuidava para que levassem a vida mais calma possível, supervisionando a comida, entregando recados para as famílias e tinha conseguido que o médico do posto de saúde visitasse regularmente os presos. Ambos bons samaritanos. O delegado circulou pelo cárcere, onde os presos estavam comendo a gororoba do dia. Um deles o observou sem disfarçar. Talvez o conhecesse de outro lugar? Logo saberia. Já tinham sabido da morte no rio. Rotina. Vários trabalhavam como mulas dos contrabandistas e traficantes e conheciam as regras. Cale a boca ou morra. Pague o que deve ou morra. Obedeça ou morra. Todos eram livres para escolher.


Os rapazes estavam discutindo a morte. Os seis tiros, um deles no rosto, tinham impressionado. Só podia ser coisa de um traficante furioso. Para eles, trabalho a menos, nunca se saberia a autoria. Um investigador, Aparecido, estava atendendo uma mulher que estava dando queixa do roubo de um botijão de gás.


“Dr., estou dizendo, foi meu vizinho que roubou o botijão. O senhor tem que ir lá para pegar de volta.”


“Como a senhora sabe que foi o vizinho?”


“Só pode ter sido o disgracido.”


O delegado saiu para almoçar antes que ela o visse.


Quando voltou no dia seguinte, várias novidades o aguardavam. Uma mulher tinha reconhecido o morto. Era o Dr. Maneco do Hospital, um médico, ex-deputado, figura muito conhecida na cidade. Sua mulher o reconhecera pelas roupas, e por uma cicatriz que ele tinha nas costas. Como o Edevaldo e o investigador não o haviam reconhecido?


“Você não conhecia o Dr. Maneco, Edevaldo?”


“Só de vista, Doutor. Quando chegamos no rio, mal olhei para o corpo. Achei que era um acerto de contas entre quadrilhas, não prestei atenção.”


Ele falava candidamente, como um bom policial conversando com o delegado. Deixou passar. Não ia comprar briga com o escrivão no primeiro dia de trabalho.


O prefeito estava na linha. O novo delegado não seria esquecido tão facilmente.




Capítulo 2


A BELA INGRID




Prazer em conhecer. Ingrid. Ingrid Müller.



O Delegado Plínio saía da Delegacia para se reunir com o prefeito e uma mulher chegava. Edevaldo, o escrivão, os apresentou. Ele, com a mente mergulhada em uma noite sombria e nublada, viu uma brisa afastar as nuvens e mostrar uma lua cintilante no céu estrelado. Era loira, não muito alta, com olhos azuis escuros, aparentando menos que os 35 anos que tinha. Uma calça jeans e uma camisa de linho azul escuro impecavelmente passada cobriam um corpo de músculos firmes. Botas de montaria. Os seios firmes espetavam a camisa. As costas eretas, o rosto sereno e um olhar frio. Os olhos contrastavam com o efeito que sua presença produzia nas pessoas. Aonde ela chegasse, o ambiente mudaria. Uma eletricidade percorreria o ar. Talvez fosse efeito do perfume suave e envolvente, como uma carícia. Mas isso seria sentido apenas pelas pessoas próximas, e ela chamaria a atenção em um salão lotado. Estava calma e sóbria, mas não parecia preocupada ou triste. Uma cerimoniosa troca de palavras se seguiu. A esposa do falecido Dr. Maneco. Vinha prestar depoimento e queria liberar o corpo para o enterro.


O delegado seguiu seu caminho com o coração mais leve. Ingrid, Ingrid Müller. A beleza feminina sempre o deixava feliz.


O investigador Leonardo aguardava no carro, aparentemente indiferente, mas com a mente tomada pela visão da viúva. Ele já a conhecia, das Festas do Peão Boiadeiro que aconteciam anualmente em Platônia. Seus cavalos, seus touros e vacas premiadas eram sempre supervisionados pela bela Ingrid. O marido percorreria a festa, apertando as mãos de todos, tirando fotografias e abraços enquanto ela cuidaria dos animais, cercada por um grupo de técnicos e peões. Uma foto da festa a mostrava com um ancinho, ajeitando com feno a cama de uma vaca, o rosto sorridente. Somente na entrega dos prêmios ela tiraria as calças jeans e se vestiria como uma estrela de cinema para receber as flores ao lado do marido orgulhoso e sorridente.


Em seu depoimento, Ingrid contou que o marido tinha ido à Curitiba, para contatos políticos, e voltaria na quinta-feira. Ele havia mandado uma mensagem dizendo que retornaria somente no sábado, mas era comum que se demorasse ou mesmo que voltasse e ficasse na cidade para reuniões com companheiros. Tinha sido deputado, prefeito de Platônia e seria candidato ao Senado nas próximas eleições. Era uma liderança estadual no agronegócio. Maneco era um homem muito popular e benquisto na cidade. O assassinato foi uma surpresa, e a violência com que fora cometido a deixara chocada. Ele não tinha inimigos políticos. Como era médico, mesmo seus adversários políticos o respeitavam. A prática da medicina era um divisor de águas. Sequer usava armas. Seu ofício era salvar vidas, dizia. As armas na fazenda eram dela, e ele mal sabia usá-las. Ela era colecionadora e uma grande conhecedora. Perguntada, disse que tinha duas Glock 9 mm, um revólver 38 Taurus, duas espingardas de caça. O delegado descobriria que ela tinha muito mais armas na fazenda. Mas isso depois. Frau Müller agora era apenas uma viúva rica. E sedutora.


Maneco e Ingrid tinham se conhecido em uma feira agrícola em Cascavel, onde ela estava cuidando de alguns cavalos em exposição. Casaram-se dois meses depois. Ela cuidava da fazenda e dos negócios, e ele fazia política. Era um casamento próspero, em que se juntaram pessoas diferentes e que se harmonizavam nas habilidades e interesses. Era uma joint venture bem-sucedida e que estava ampliando seus horizontes para além dos limites de Platônia. Agora não mais. Maneco logo seria esquecido, mais um político promissor que teve as asas cortadas pelo destino. Mas sua viúva não estava abatida. Era a principal herdeira do conglomerado e a CEO do empreendimento. Para ela, a morte do marido era apenas um incidente de percurso.



3. INVESTIGADORA MAÍRA


O delegado Plínio recebe reforço. E um grande problema.




Chegou a nova investigadora da delegacia. Uma morena de pele cor de jambo, com um olhar de peixe morto, mas com um corpo invejável. Ela pratica boxe tailandês, e é uma ótima atiradora. Tem bíceps desenvolvidos, seios firmes que a camiseta justa realçava, um traseiro em forma de pera que se prolongavam em pernas bem delineadas. Sua pele é fresca e saudável, brilhante. É o tipo que só come vegetais e bebe socialmente. Ninguém vai brincar com a mocinha sem ser convidado. Tem fama de durona. É a bela e a fera. Maíra, Maíra Tavares. É formada em Direito e pretende um dia ocupar a cadeira do delegado. Seja bem-vinda ao clube, ele pensou.


O delegado Plínio levou-a para conhecer o pessoal e a delegacia. A equipe é tão pequena que cabe em um fusquinha. Quando ele soube que iria receber mais um funcionário quase deu tiros no ar de alegria. E sendo formada em direito, uma dupla alegria. Hoje em dia o trabalho é mais burocrático do que qualquer outra coisa, e um bacharel em direito na delegacia vale ouro. E se for estudioso, como o Edevaldo, mais ainda.


Maíra é do tipo compenetrado, mas tem suas manhas. Olhou para Mad Leo, o homem de ação da delegacia, vestido com roupas de camuflagem, como se fosse um soldado na selva, que não parece ser tão forte quanto Arnold Schwarzenegger, nem tão ágil quanto Jackie Chan, e levantou uma das sobrancelhas negras de leve. Deve ter gostado do que viu. Vão treinar boxe juntos. Mas Mad Leo é um mulherengo, beberrão e indisciplinado. Encrenca à vista, pensou o delegado.


Percorreu séria e muda a carceragem. Havia cinco mulheres na ala feminina, prostituição e tráfico de drogas. Mulas. Havia uma garota menor de idade, franzina, aguardando a chegada do pessoal do Centro de Socioeducação, que cuida dos menores. Era a mais perigosa de todas; latrocínio, com requintes de crueldade. Ela atraía adultos tolos com seu ar de adolescente safada e os matava com um canivete suíço. Uma psicopata com cara de anjo. Não havia onde guardá-la, e ela ficou junto com as demais presas. Seria só por hoje.


Por que a apatia nos olhos, Maíra? Parece jovem demais para ser tão desanimada. Mas desde que fizesse o serviço, o delegado Plínio estaria satisfeito. Já vira esse olhar em tiras velhos. Velhos policiais fizeram coisas de que agora se arrependem, embora não confessem. Quando necessário, fazem o serviço, mas já estão cansados. Mas em uma policial com pouco mais de 30 anos, no máximo cinco anos na carreira, a apatia deve significar outro tipo de problema.


Ela tem um filho morando em Curitiba com a mãe. Talvez seja isso. Na ficha constava como solteira, e talvez o desânimo seja devido à saudade da criança, ou um final de caso.


Com a chegada dela, Leonardo teria mais tempo livre para ajudar no caso do Dr. Maneco. Pelo menos por um tempo, até que a burocracia engolfasse também a nova investigadora e Mad Leo fosse obrigado a mergulhar também na papelada.


Ajustaram os plantões, e o delegado voltou para sua sala. A equipe precisava conversar entre si. Jogou as pernas na escrivaninha, e olhou desanimado para os processos caprichosamente empilhados na mesa pelo escrivão. O serviço de Edivaldo, como sempre, estava em dia. O do delegado Plínio se acumulara desde a saída do delegado anterior.


Um burburinho na sala da frente chamou sua atenção. Passos rápidos se aproximavam da porta. Lá vem encrenca, pensou. Mad Leo abriu a porta sem cerimônia. Ele não era do tipo educado. Jamais bateria a porta antes de entrar.


- Delegado, abra o celular. Veja o WhatsApp.


Ele retirou o celular da gaveta e viu centenas de mensagens e outras mais pipocando. Abriu uma das imagens e viu a foto de uma das lojas da cidade, com um grande letreiro: New Look of The Year. New Look em letras garrafais escuras, e of the year atravessado em letras menores em vermelho. Na vitrine, em exposição, um manequim com um terno da moda, paletó justo, sem abotoar, calças justas, camiseta branca, sapatos de couro marrom esportivos. Uma roupa para homens elegantes. Mas o manequim era um homem com o rosto estraçalhado e vários furos no peito. O sangue empapava a camiseta e o paletó. O homem, sentado em uma cadeira, cercado por vários manequins com roupas femininas com os braços estendidos em direção a ele, produzia um efeito cômico. Mas não havia graça no rosto despedaçado.


Alguém escrevera indignado em letras maiúsculas:


NÃO HÁ POLÍCIA EM PLATÔNIA?




4. MORTE NA PRAÇA


Toda a população de Platônia resolvera apreciar o espetáculo.





A Praça da República, onde ficava a The New Look of the Year, estava lotada, apesar de serem apenas 9 horas da manhã de um sábado. Uma multidão se aglomerava na frente da loja, celulares na mão, tirando fotos e falando excitados para as câmeras. Toda a população de Platônia resolvera apreciar o espetáculo. Paulo Mendes, da Rádio Difusora Platonense – a mais querida de Platônia – estava falando sem parar. Alguns blogueiros estavam transmitindo com a vitrine ao fundo. A notícia já tinha sido compartilhada nas redes. O delegado Plínio foi abrindo caminho em meio à multidão. Na frente da ampla vitrine, um homem desacorçoado estava sentado, as costas na parede, as pernas dobradas, indiferente à multidão. Era o gerente da loja, que fora o primeiro a chegar. Sua primeira tarefa do dia, antes de abrir a loja, era levantar a folha de aço da vitrine e da porta da loja.


Na vitrine, um homem vestido com um terno azul marinho, de corte justo, usando sapatos marrons esportivos e uma camiseta branca, estava escarrapachado em uma cadeira de praia, braços pendentes, o rosto estraçalhado por um tiro. A camiseta e o paletó estavam empapados de sangue. Três modelos femininos de biquini, sarongue, blusinhas coloridas e grandes bonés de sol o cercavam, com os olhos vazios fixos em seu peito. Uma grande mancha de sangue tinha escorrido para o chão, compondo a cena. Ele deveria ter 50 e poucos anos, um início de calvície, os cabelos desgrenhados se misturando ao sangue e pedaços de carne e cérebro do rosto destruído. Havia cinco furos de bala no peito, como no caso do Dr. Maneco. Os curiosos já tinham identificado o morto: Marcos, o proprietário da The New Look of the Year. Bons fisionomistas. Mas Marcos estava em casa, e era famoso pela elegância. Era o melhor garoto-propaganda de sua loja.


A Polícia Militar chegou e começou a afastar a multidão. O delegado entrou, acompanhado do investigador Leonardo, ambos com as armas engatilhadas na mão, um reflexo automático do treinamento da escola de polícia. Era uma loja grande, com espaços para moda feminina, masculina e infantil, decorado com espelhos por todos os lados, balcões e araras com roupas. Aqui e ali cestas com roupas em oferta. O ar abafado da loja estava impregnado do enjoativo cheiro de sangue. O delegado Plínio e o investigador Leonardo percorreram lentamente a loja, acompanhando a trilha de sangue que começava na vitrine e terminava no escritório, onde o morto deveria estar trabalhando e onde fora morto. Gavetas abertas e reviradas, papéis e fotos espalhadas pelo chão do escritório, mostravam ter havido uma busca frenética no local. Um cofre de parede estava escancarado, vazio. Maços de dólares jogados no chão mostravam que o objetivo não tinha sido roubo. Uma porta dava para a rua lateral. Quem fizera o serviço ao sair fechara a porta. Ou talvez o morto tivesse dado seis tiros em si mesmo e a seguir fora descansar na vitrine. Nada estava descartado.


***


Uma equipe da Globo de Cascavel tinha vindo a Platônia e estava entrevistando populares para o jornal do meio-dia. À noite eles entrariam ao vivo no Jornal Nacional. O apresentador Ratinho tinha mostrado vídeos em seu programa, mostrando ao mesmo tempo um ar perplexo, compungido e indignado. Ele exigia providências, no modo de caboclo exaltado de Jandaia do Sul. Maneco era seu amigo, um homem bom, e lágrimas vinham aos olhos. Um outro, Datena, também não teve papas na língua. Um serial killer estava solto em Platônia, dizia com ar indignado. Paulo Gomes, em seu programa diário (ele também devia ter conhecido o Dr. Maneco), mostrava um olhar também preocupado. Os vídeos do Youtube mostrando o morto na praça escalaram para o primeiro lugar no top trending no Brasil. Estava também em primeiro no X e no WhatsApp.


***


Ele observou o aviãozinho taxiar no pequeno aeroporto de Platônia. Uma equipe da técnicos da Polícia Científica de Curitiba estava chegando para examinar o local do crime. O mesmo avião levaria os cadáveres para serem examinados pela perícia médica. O Dr. Plínio iria junto. Ele teria preferido acompanhar os trabalhos no local das mortes, mas o Diretor Geral o chamara para conversas. Ele iria, contrariado, mas a viagem não seria em vão.




5. PAJELANÇA


A perícia técnica entra em ação. O delegado Plínio recebe uma oferta irrecusável.



O delegado Plínio percorreu os corredores do prédio central recebendo cumprimentos dos colegas. Um velho tira, Ligeirinho, veio falar com ele. “Se precisar é só chamar, Chefe. As coisas andam meio paradas aqui.” Um rosto que nunca sorria, mas confiável. Plínio o conhecia muito bem. Mas não era de homens do gatilho que ele precisava. Na sala do delegado geral já estavam todos: o médico legista, o pessoal da perícia, os especialistas em assuntos vários que o chefe chamara. No telão, o investigador Leonardo e Maíra estavam aguardando, na sala do delegado, o único local da delegacia de Platônia onde poderiam falar sem serem ouvidos pelo resto da cidade. Edivaldo não estava participando da investigação, cuidando de tocar o resto das atividades.


O delegado geral abriu a reunião ressaltando a importância do caso. A imagem da polícia civil estava em jogo, afinal. Todos os esforços necessários para elucidar os crimes seriam tomados. Prioridade máxima para o caso. Todas as equipes técnicas estariam à disposição da investigação.


Plínio comparecera pensando que iria se reunir com o delegado geral e se surpreendera com a reunião, que mesclava chefes dos diversos setores e técnicos. Era uma reunião política, para deixar claro a importância do caso para todos os órgãos policiais, mas também uma reunião de trabalho. O delegado geral assumira o ar policial. Era um hábil político, mas passara a vida em delegacias. Ele sabia o que deveria ser feito, e sabia também que o delegado Plínio era a pessoa certa para o trabalho.


Plínio resumiu o caso. As mortes tinham ocorrido em um intervalo de uma semana. O modus operandi indicava uma única autoria, o que deveria ser comprovado pela balística. As investigações no caso do Dr. Maneco tinham sido inconclusivas. Ele havia se reunido em Curitiba com um grupo de deputados, e a seguir pegara o carro para Platônia, onde chegara por volta de 9 horas da noite. Avisara a mulher, Ingrid, que ficaria na cidade, para uma reunião com o prefeito e cabos eleitorais na manhã seguinte, e não dera mais notícias. O carro em que ele viajara e provavelmente o tinha levado ao rio havia sumido. Sobre a morte de Marcos da New Look ainda nada se sabia.


Os peritos haviam trabalhado sem parar e já tinham os primeiros resultados. O Dr. Maneco tinha recebido todos os tiros à queima-roupa e morrera por volta de 22 horas de sexta-feira. Marcos havia recebido um primeiro tiro à distância, um tiro que deveria tê-lo derrubado, e a seguir os demais tiros a curta distância. As marcas de chumbo nas roupas e no corpo eram conclusivas. Morrera por volta de 21 horas. Todos os tiros haviam sido disparados pela mesma arma, calibre 9 mm, uma Glock, a julgar pela munição empregada. Era uma munição comum, encontrada em qualquer loja do outro lado da fronteira. Os seis tiros (um deles na cabeça) indicavam uma explosão de ódio. A colheita de impressões digitais no local da morte de Marcos nada havia encontrado. O cofre do escritório mostrava digitais de Marcos – somente ele tinha a combinação. O assassino deve tê-lo obrigado a abrir o cofre. Na vitrine nada havia sido encontrado. A cadeira de praia onde o corpo fora colocado só tinha digitais dos funcionários, assim como no escritório.


Plínio escutou tudo admirando a rapidez dos colegas da perícia. Eles deveriam ter trabalhado sem parar, recolhendo digitais dos funcionários e na loja para confrontar com os achados. O médico legista mostrava sinais de ter passado a noite acordado.


Maíra encerrou os relatórios. Todos os funcionários da loja haviam sido interrogados. Eles haviam saído às 18 horas; o gerente da loja às 18:30 horas. Depois de baixar as portas de aço, despedira-se de Marcos que estava trabalhando no escritório, e saíra pela porta lateral fechando a porta. Só havia duas chaves: a dele e a do proprietário. A chave de Marcos fora encontrada na escrivaninha, e o gerente estava com a sua. O assassino tinha uma cópia. As câmeras de vigilância tinham sido desligadas às 18:48, o que era estranho, pois elas permaneciam ligadas 24 horas, podendo ser acessadas pela internet por ele e pelo proprietário. Mas o gerente não as vira durante a noite, sabendo que o chefe lá estava. Os vizinhos foram contactados e nada sabiam. Era uma zona comercial, e todas as lojas da vizinhança haviam fechado por volta das 18 horas. Um comerciante saíra de sua loja às 19:15 e nada vira. O beco lateral estava deserto neste horário.


O delegado geral perguntou se Plínio gostaria de receber reforço. Uma força-tarefa estava pronta para ser enviada a Platônia e ajudar os trabalhos. Mas Plínio recusou, após agradecer a oferta. Era a sua delegacia, e ele não queria um grupo de passagem sobre o qual ele não teria controle. Uma manada de elefantes na loja de louças de Platônia causaria mais mal do que bem. Se necessário eles seriam acionados. Pediu apenas alguns homens para ajudar no dia a dia da delegacia e liberar a sua própria equipe para as investigações. Mas com isso Plínio selou seu destino. O fracasso na investigação seria só dele, e de mais ninguém. O delegado geral, impassível, concordou. Ele conhecia seu homem. “Por sua própria conta e risco”, pensou. Todos ficaram em silêncio.


A reunião terminou. Plínio estava onde havia começado. Num beco sem saída. No escuro. E no meio da tempestade.



6.

MIRTES


O delegado Plínio investiga. Surge uma luz no túnel.





Trabalhar em péssimas condições faz parte do ofício, pensou o delegado Plínio. Ele era pago para fazer o trabalho, não para reclamar. Já que em Platônia um muro de silêncio se erguera e as investigações não avançavam, resolveu fazer perguntas em Curitiba. Histórias que não se contam no interior, as pessoas ficavam sabendo aqui.


Ligou para Mirtes, combinando um encontro. Pela profissão, ela conhecia pessoalmente ou ouvira falar de todas as pessoas da cidade. Já tivera casas muito movimentadas e famosas. Agora mantinha uma lojinha, longe dos tempos de glória, mas ativa, e que não funcionava nos finais de semana. Longe estavam as noitadas onde políticos e empresários ricos promoviam festas regadas a champanhe, com shows espetaculares e mulheres deslumbrantes, vestidas para matar. A freguesia hoje comparecia durante o horário de expediente, após o almoço, o movimento crescendo durante a tarde, entrando na noite e indo até as 10 horas, quando fechava. O Bar da Mirtes era muito discreto. As moças eram bonitas e não usavam perfume, um detalhe importante para os homens casados. Um desavisado pensaria ser um bar comum, mas não era. Ela tinha um compromisso, e combinaram um encontro na Sorveteria do Gaúcho, na Praça do Skate. Plínio nunca soubera que ela gostasse de sorvete ou de skate, mas as mulheres que o surpreendiam o deixavam sempre bem-humorado. Ele gostava do inesperado.


Estava vestindo uma saia longa e colorida, que escondia suas belas pernas. O rosto levemente maquiado dava a ela um ar juvenil que combinava com os cabelos soltos. Um cabeleireiro hábil fizera o trabalho. Uma bolsa Louis Vuitton e um tênis Louboutin lembravam os dias de prosperidade. Ela tinha estado, anos atrás, na delegacia, e o delegado Plínio tomara seu depoimento. Tinha sido acusada de cafetinagem e prostituição, coitada. Mas bons advogados – muitos advogados frequentavam sua casa – mostraram o absurdo das acusações e o caso fora encerrado. A amizade com o delegado permaneceu.


Tomaram um sorvete enquanto caminhavam pela praça. Garotos tatuados faziam manobras perigosas. Uma daquelas tardes gloriosas de Curitiba, com um céu azul-claro e uma luz que fizeram a alegria dos pintores, quando havia pintores que faziam paisagens e cenas domésticas. O Bar do Pudim estava fechado, mas a tarde pedia sorvete, e Plínio sabia que Mirtes não era dada ao álcool. Sempre a vira sóbria e sedutora, atenta para depenar os fregueses, a qualquer hora do dia ou da noite. Era uma predadora que nunca descansava.


Caminharam lentamente em direção à entrada do Cemitério Municipal, sorrindo um para o outro, contentes com a companhia e a tepidez da tarde. Mirtes se dirigiu ao portão. Logo depois da entrada, ela pegou a alameda à direita. Junto ao muro da praça, uma profusão de ex-votos e pequenas placas anunciavam um santuário. Um cheiro de velas pairava no ar. Em uma pequena capela via-se a imagem representando a santinha popular, Maria Bueno. Era a santa dos pobres e das mulheres problemáticas. Uma mulher assassinada pelo amante e acusada de ser prostituta era objeto da devoção de Mirtes. Plínio observou em silêncio enquanto ela retirava uma almofada da bolsa, e se ajoelhava para rezar, a cabeça baixa, os olhos fechados e as mãos unidas.


***


Contou o caso, que ela já sabia, pelo noticiário dos jornais e pelas redes sociais. O silêncio das testemunhas, a falta de colaboração, a história que todos se conheciam, mas não se conheciam de verdade. Ela ouvia enquanto observava uma moça manobrando um skate.


- Um grupo esteve certa vez na minha casa antiga. Mas o que eu tinha a oferecer não interessava a eles. Eu tinha umas garotas novas, mas eles queriam menininhas. Não é meu ramo. Já tinha problemas demais com adolescentes falsificando documentos para trabalhar. Mas elas eram mulheres feitas, apesar da idade. Imagine se eu iria arrumar crianças para a clientela. Um deles era de Platônia, eu sabia por que ele era deputado. Muitos políticos frequentavam minha casa. Ele disfarçou, dizendo que eram os amigos que queriam as meninas, mas estava na cara que todos estavam interessados. Nunca mais os vi.


Ela não lembraria as fisionomias. Tinha sido há muito tempo. Eram cinco, ou seis? Talvez. Só tinha certeza do deputado, bem conhecido na época. Foram caminhando devagar em direção ao carro de Plínio. Ela olhou com desdém para o carro malconservado. Mas ela o conhecia e sabia de seu desinteresse por carros. Plínio só se interessava pelo trabalho. E mulheres. E bebidas. Era um homem tedioso, ela pensou. “Cada homem que aparece na vida de uma mulher. Maria Bueno que o diga”. Ela se acomodou no carro. Não sabia quando se encontrariam novamente. O que se leva da vida é a vida que a gente leva, era o seu lema. A santinha concordaria.


- Plínio, chega de trabalho. É hora de agradar a mocinha.


Plínio sorriu. Mirtes lhe dera o motivo. Estava na hora de agradar a mocinha.





Capítulo 7


UMA FAZENDA EM PLATÔNIA


O delegado Plínio viaja no tempo e no espaço.


A estrada até a Fazenda Dois Irmãos era bem conservada, com trechos sinuosos, mas quase sempre em linha reta. Leonardo dirigia enquanto tagarelava. Convidou o delegado para a festa de aniversário do vizinho da delegacia. Seria um churrasco, só para os bons, disse. Plínio pensou que neste caso ele não deveria comparecer, mas ficou em silêncio. Percorreram um trecho à beira do rio. A caminho do primeiro corpo, Dr. Maneco, haviam passado por lá. Abriram uma cancela que levava à propriedade, igual a todas as cancelas de fazendas mundo afora. A estrada interna mostrava sinais de cuidado. A paisagem parecia construída por um pintor de paisagens. Alguma lembrança fugaz veio à memória de Plínio, mas ele deixou passar.


Quando chegaram à sede, a casa senhorial, construída em estilo germânico, dominando outras construções no mesmo estilo, iluminou sua mente. Eles estavam em uma propriedade que poderia estar na Alemanha. Ali teria morado um aristocrata prussiano, em meio a criados, cachorros e cavalos, no intervalo entre as guerras de Frederico II. Um moinho de água próximo à sede completava o cenário. Frau Müller não era uma fazendeira comum.


Quando chegaram, o delegado Plínio despachou Leonardo. Ele deveria circular pela propriedade e conversar com o pessoal da casa. “Seja discreto, ela não é suspeita, é a mulher da vítima” avisou, sabendo que era uma recomendação inútil. Mad Leo não era um homem sutil. Para ele, o mundo estava povoado de criminosos. E todos eram culpados até prova em contrário. Mas ele era uma pessoa gentil e seu olhar de cachorrão amoroso agradava as mulheres. Já os homens admiravam seus músculos e sua conversa franca e masculina. Ele daria conta do recado.


Ingrid o recebeu sentada no sofá, relaxada, com cabelos molhados colados na cabeça, com ar de quem havia tomado um banho. Cheiro de sabonete no ar. Os olhos azuis já não tão escuros. Era uma mulher que gostava da vida no campo. Tinha acabado de matar uma vaca, disse.


Olhou para as fotos emolduradas nas paredes e prateleiras: fotos do casal, um touro premiado, cavalos, pôr-do-sol na fazenda, vistas do Rio Paraná, o hospital, festas na piscina. Não tinham filhos. Na beira da piscina uma loira de óculos escuros sorria para a câmera, mostrando um corpo bronzeado. Uma foto de um colorido antigo, de um grupo de adolescentes sorridentes em frente ao colégio da cidade chamou sua atenção. Reconhecera o Dr. Maneco entre os cinco rapazes. Tirou uma foto com o celular.


Frau Müller deu ordens para uma governanta que aparecera silenciosamente.


Margarethe, bring bitte einen Kaffee mit.


Percebendo onde estava o olhar do delegado, Ingrid comentou:


- São colegas de escola. No centro, o João Apolinário. À sua direita, Maneco. À esquerda, Marcos. Não conheço os outros dois. Acho que não moram mais na cidade. Mas eles nunca estiveram aqui. Maneco nunca me falou deles.


E dois deles haviam sido assassinados. O delegado anotou mentalmente que deveria conversar com João Apolinário.


Uma jovem loira, de olhos azuis claros, apareceu com café, água e biscoitos. O aroma de café fresco e biscoitos quentes tomou conta da sala. Ela os serviu, enquanto Ingrid e Plinio se olhavam em silêncio, e se retirou.


Uma das Glock tinha desaparecido, disse, com um ar casual.


- A Glock estava registrada?


- Claro.


- Notificou a polícia do desaparecimento da arma?


- Não. Não tive tempo. Só me dei conta disso ontem.


- Tem idéia de como aconteceu?


- Não sei. Eu a usei no mês passado. Eu a deixei no galpão, após um exercício. Um dos peões deve tê-la guardado e esqueceu de me avisar. Preciso perguntar ao pessoal.


Ingrid chamou o encarregado, um homem alto, magro, de cabelos grisalhos curtos e que falava com sotaque que era um misto de alemão e espanhol. Devia ter vindo do Paraguai. Ele de nada sabia. Iria averiguar entre os trabalhadores. Mas todos os empregados frequentavam o local. Qualquer um deles poderia ter pego a arma. Ele faria uma lista do pessoal para ser interrogado pela polícia.


Foram até a sala onde ficava a coleção de armas. Tinha aprendido a atirar com o pai, um alemão que vivia em Marechal Cândido Rondon, nascido no Paraguai e que havia se estabelecido no Brasil. Em uma das paredes, várias armas antigas chamavam a atenção. Plínio reconheceu uma Luger, mas não as demais. Uma submetralhadora e um fuzil de assalto ocupavam um lugar de destaque, junto com a Luger. “Armamento padrão do soldado alemão na Segunda Guerra”, ela disse. Uma AK-47, ao lado de um M 16. Ela apontava uma a uma e falava como conhecedora. Todas as armas brilhavam, e percebia-se um leve odor de óleo. Todas pareciam prontas para uso. Ela era uma colecionadora cuidadosa.


Agora que não havia mais perguntas, havia outra tensão no ar.


Falaram de coisas aleatórias e desconexas. A cidade, a beleza do rio, como gostava de cavalos, das festas de faculdade, das temporadas no Rio de Janeiro aonde ia sempre que podia. Música sertaneja. Dançar. A vida solitária na fazenda, com o marido sempre viajando, fazendo política ou trabalhando no hospital. Leituras. Cuidar dos animais na companhia de peões, a égua que deu cria, o gado de raça, o touro premiado. A festa para a qual matara uma vaca.


A voz tornou-se mais lenta e rouca. Depois de algum tempo, só ela falava, como num confessionário. Às vezes ria, sem motivo; os olhos ficaram úmidos ao lembrar da irmã. A noite chegou sem que percebessem, trazendo uma friagem.


Não falou do marido.


Mas o delegado não se deixou seduzir pela intimidade. O ambiente rígido e disciplinado da fazenda destoava da fragilidade de Ingrid. Algo estava fora de lugar.


***


Entraram no carro, e Leonardo foi arrancando devagar. A bela casa germânica foi ficando para trás, enquanto passavam pela alameda de ipês amarelos e roxos. Enquanto Plínio conversava com a dona da casa, ele não tinha perdido tempo. Andara pela casa, conversara com os empregados da mansão, e os peões que cuidavam do gado e estavam de folga durante a tarde.


- A cozinheira, a Piedade, se engraçou comigo. Combinei voltar amanhã à noite para conversar com ela.”, disse sorrindo.


Mais confusão na vida de Mad Leo. Ele não media sacrifícios pelo trabalho.


- Frau Ingrid é uma excelente atiradora. Os peões dizem que ela pratica todos os dias.


Ele tinha visto as armas. Só não tinha visto a Glock.


- Uma das meninas treina com ela. Uma polaquinha.


Para Mad Leo, que tinha acabado de sair de uma fazenda alemã, todas as mulheres loiras eram polacas.


- O nome dela é Irina. Estão sempre juntas. E Irina tem um namorado, o rapaz que fabrica linguiças na estrada do rio.





Capítulo 8


CHURRASCO NA LAJE


O delegado é sempre o último a saber.


Plínio acordou no dia seguinte inquieto. A tentativa óbvia de Frau Müller de seduzi-lo era um dos motivos. Já sabia que o casamento dela era mera conveniência comercial, mas a intimidade com que fora tratado o deixara frio. Plínio não tinha ilusões sobre si mesmo. Seus feromônios estavam ativos, mas ele não era Brad Pitt. Ingrid Müller queria afastá-lo da investigação, e para isso usou da arma que mulheres usam desde sempre, o sexo e uma falsa fragilidade. Mas havia outras questões que o deixavam insatisfeito. O fato que Maneco, Marcos e João Apolinário eram amigos desde a adolescência e isso nunca chegara a seu conhecimento. Na cidade todos se comportavam como se as vítimas mal se conhecessem.


Na delegacia ele deu tarefas para o pessoal. Leonardo e Maíra percorreriam a estrada do rio para conversar com os moradores. Talvez alguém tivesse visto alguma coisa na noite da morte do Dr. Maneco. Edevaldo deveria pressionar as empresas telefônicas para apressarem a entrega das ligações celulares das vítimas e chamar João Apolinário para prestar depoimento. O pessoal saiu para cumprir as tarefas e o delegado começou a despachar os inquéritos e atender telefonemas.


Edevaldo abriu a porta e anunciou que João Apolinário tinha saído para pescar e ficaria fora alguns dias. Não havia cobertura de celular onde ele estava. Os relatórios das empresas telefônicas estavam a caminho. “Estão vindo pelo Correio, em lombo de burro”, falou com ar de galhofa. Leonardo havia saído armado até os dentes. Maíra somente com um 38 e a faca na cintura. “Voltamos para o churrasco”, Leonardo disse sorrindo. Ele precisava de muita proteína para manter os músculos.


O aniversariante, Amílcar, era vizinho, dono de uma loja de material de informática e que consertava de graça os computadores da delegacia, graças à amizade com Edevaldo. Era um anfitrião jovial e animado. Como ele conhecia os amigos que tinha, todos eram intimados a trazer bebidas. O delegado Plínio levou uma garrafa de uísque. Foi muito festejado, mas naquela região bom uísque era artigo comum. Chegou com Edevaldo, depois do expediente, e foi levado ao terraço onde havia uma churrasqueira e algumas pessoas já estavam tomando cerveja. Havia duas crianças, filhos do aniversariante, e a esposa, mas logo eles se foram. A festa era só para os amigos e clientes.


O assador, Josino, era um amigo do dono da casa. Um taxista que agora trabalhava com Uber. Ele cortou uns pedaços de picanha, colocou-os no prato e o deixou ao alcance do delegado. Plínio retribuiu com um copo de cerveja, que ele tomou aos golinhos enquanto também comia a carne, de olho na churrasqueira.


Comeu uns pedacinhos de carne fumegante, de pé, ao lado do churrasqueiro. Tomou um copo de cerveja. Estava faminto após o dia de trabalho. O delegado olhou para a garrafa de uísque, mas resistiu. Estavam tocando Boate Azul, e os convidados, apesar de sóbrios, acompanhavam a canção. Mais algumas doses e eles a cantariam aos brados. Não seria um bom negócio. Ele tinha uma reputação a zelar. Em pedaços, mas tinha.Enquanto virava a carne, Josino comentou, sem olhar para o delegado, quase sem mover os lábios, falando para si, que já tinha assado carne na Km 30, fazenda do João Apolinário. Plínio, ao lado, de costas para a churrasqueira, observava um gavião circulando sobre o rio.


- De vez em quando me chamavam para assar carne lá. Eram sempre os mesmos. Uma vez sortearam uma menina mais novinha entre eles. Só cinco homens e umas novinhas. Coisa fina, disseram.


- Mais novinha quanto?


- Não vi. Ela só apareceu depois que eu saí. Alguém falou em 12 anos.


Edevaldo conversava com o anfitrião e observava a conversa. Mad Leo e Maíra chegaram, os dois com as botas sujas de lama, e foram direto para o balcão. Um dos convidados se apossara do bar e preparava uma fileira de shots de tequila. Leo e Maíra bateram os copos e beberam de um gole a bebida. Pegaram outros dois copos. Duas garotas de minissaia, botas e chapéu, dançavam animadas.


Josino se virou para o delegado e disse:


- Doutor...

O delegado não o deixou continuar.


- Ok. Fique tranquilo.


Plínio foi conversar com os outros convidados. Pensou em matar o Edevaldo, mas neste caso ele ficaria sem um escrivão. Tomou uma dose de uísque sem gelo. Estavam tocando “Foi pensando em você”, de Mato Grosso e Matias.


***


O escrivão Edevaldo era boa-praça, esforçado, sério, fazia mais do que era o seu dever na delegacia. Todos gostavam dele. Estudava direito em Maringá, e estava sempre com um livro à mão. As contribuições dos empresários locais à delegacia sempre tinham o dedo dele. Estava estudando princípios jurídicos e começou a falar em Ronald Dworkin. O delegado conteve o ímpeto de interrompê-lo e ouviu paciente. Lembrou que quando estava na faculdade gostava de discussões jurídicas com os colegas. A mulher do botijão furtado apareceu e interrompeu a tertúlia jurídica.


Quando ele voltou, questionou-o sobre o que tinha ouvido do assador Josino.


- Volta e meia o povo fala sobre umas festas na Km 30. Mas se formos prestar atenção a todo falatório, ninguém iria trabalhar mais. Além disso, nunca houve nenhuma queixa de perturbação da ordem ou de presença de menores nas festas.


E acrescentou, com um leve tom de desafio:


- João Apolinário é um pilar da comunidade platonense.


Logo voltou ao habitual ar deferente. Plínio estava cansado disso. Mas entendia a posição dele; afinal, o delegado estava de passagem, Edevaldo era da cidade.


Mostrou a foto dos cinco rapazes no celular. Ele os reconheceu imediatamente. Eram eles. João Apolinário ao centro, ladeado por Marcos e Maneco, John Lennon da Silva e Alfredo Siqueira. Os dois últimos não moravam mais em Platônia.


O delegado é sempre o último a saber.


Edevaldo permaneceu em silêncio e em seguida saiu para vistoriar a carceragem.




Capítulo 9


TRALHA DO PESCADOR


Debaixo da mata a trilha era bem definida...



Leonardo e Maíra seguiram pela estrada em direção ao Rio Paraná. Não seria uma tarefa difícil. Pouca gente morava naquele trecho. Em um rancho à beira da estrada, alguns quilômetros do rio, um grupo de índios guaranis vendia bugigangas aos passantes. Eles não falavam português, e se comunicaram mal em uma algaravia de guarani, espanhol e gestos. Eles observaram em silêncio a dupla, os olhos suspeitosos da autoridade e das armas que ambos portavam na cintura. Uns dez quilômetros do local onde o corpo de Maneco fora encontrado eles pararam em um pesqueiro que ficava a umas dezenas de metros da estrada, quase às margens do rio. Era o Tralha do Pescador, local conhecido por Leonardo. O dono sabia da morte, que ajudara a melhorar os negócios. Muita gente passara a vir ao local, atraído pela notícia do corpo furado por balas, mas na noite do assassinato ele nada vira ou ouvira.


O Tralha do Pescador era um barracão com tijolos a vista, uma grande área coberta com telhas de zinco abrigando mesas com toalhas plásticas coloridas, e várias churrasqueiras ao ar livre onde os fregueses poderiam assar carne. Leonardo narrou para o delegado o que tinha conseguido.


- Doutor, sabe que eu sou pescador. E costumo ir a um rancho ali perto do Paranazão, o Tralha do Pescador, onde eles têm tralha de pesca, cerveja e fritam um peixe para a turma. Tem umas mesas espalhadas ao ar livre, quase não tem movimento e a turma fica bem solita e tranqüila. Quem quiser pode levar a carne e assar numa churrasqueira ao ar livre. O dono é meu amigo.


O proprietário era informante de Leo. Que não gostava de pescar. Não tinha paciência. E ele não tinha amigos.


- Ele nos contou uma história antiga sobre um cara que costumava ir lá à noite, com uma menininha que podia ser a filha dele, devia ter uns 11 anos. Esse cara era um professor do colégio, e a menina era aluna dele. Ficavam na mesa mais afastada, perto das árvores, na sombra. Às vezes ele ia sozinho e dizia muito satisfeito que andava comendo a menina. Na maior cara de pau.


Alguns quilômetros à frente, bateram na porta do fabricante de linguiças. João e Maria, os proprietários, tinham uma criação de porcos e os abatiam para fabricar linguiças que depois seriam vendidas em Platônia. Uma plantação de abóboras e um milharal fornecia os alimentos para os porcos. Eram bem conhecidos na região. Sua linguiça era apreciada pelos consumidores. Eles tinham dois filhos, uma garota adolescente e um jovem adulto que os ajudavam. O rapaz não estava lá. O casal nada havia visto ou ouvido na noite do crime. Eles dormiam cedo e acordavam cedo, numa rotina rural. A menina também nada sabia. Nada perturbara a família naquela noite.


O rapaz chegou em seguida. Mateus era um jovem de ar rústico, magro e rígido, com um corpo de alguém acostumado a trabalhos braçais. Ele tinha uma barba incipiente, cabelos despenteados e um ar casmurro. Ouviu as perguntas e respondeu com monossílabos: “sim”, “não”, “hã”, gestos de cabeça. Ele não pretendia participar do concurso de Miss Simpatia de Platônia. Mas também nada sabia. Leonardo perguntou sobre a namorada, Irina. Ele aparentou surpresa.


- Não tenho namorada.


Leonardo sabia que não era verdade. Ele tinha sido visto várias vezes na Fazenda Dois Irmãos, em companhia de Irina. Deixou passar. Ele retomaria o assunto, se necessário.


Enquanto Leonardo conversava com Mateus, Maíra percorria a propriedade com o casal, João e Maria. Eles mostraram o galpão onde as linguiças eram fabricadas, o chiqueiro dos porcos, a pequena plantação de milho e abóboras. Nos fundos do galpão, Maíra observou o milharal e viu, além da mata, um pequeno morro em que se destacava um enorme flamboyant, dominando uma suave curva do Rio Paraná. O sítio era vizinho ao local do assassinato de Maneco.


Maíra percorreu a trilha que se iniciava logo após o milharal. Debaixo da mata a trilha era bem definida, como se animais a percorressem, no caminho do rio. Em poucos minutos ela chegou ao morro e se deparou com a majestade do Paranazão, observado pelo gigantesco flamboyant.


No carro, Leo e Maíra trocaram informações. Ambos pensaram a mesma coisa, mas, investigadores tarimbados, guardaram a conclusão no fundo da mente. Maíra mudou de assunto.


- Gosta de dançar? Eu adoro dançar.


Quando Maíra reportou ao delegado, foi incisiva.


- Levei cinco minutos para chegar ao morro. A mata densa amortece os ruídos. Dei uns tiros no local, e Leonardo nada ouviu, enquanto conversava com Mateus.




Capítulo 10





BALANÇO GERAL


Brainstorming na delegacia.



O delegado Plínio colocou os pés na escrivaninha, pensando com seus botões. O caso do botijão furtado não saía da sua cabeça. Havia o craqueiro que furtava todos os pertences da casa para alimentar o vício, para desespero da mãe, que ia todos os dias à delegacia. O marido que comemorou o aniversário de casamento enchendo a mulher de pancada. A mulher que saiu nua pelas ruas, gritando, para espanto e galhofa dos vizinhos. Uma mulher solitária. “Eu também estou solitário, mas fico na vontade. Não saio gritando pelas ruas”. Estava difícil concatenar as idéias com tantos problemas para resolver. Os pés, com os calcanhares no tampo da mesa, concordavam com a cabeça. Problemas de alta indagação exigem providências mais enérgicas, diziam. A promotora concordava com a juíza. O delegado é um banana. Além de tudo, preguiçoso. Só trabalhava 14 horas por dia. E ainda tinha o desplante de almoçar e jantar durante o expediente. E não fazia a barba todos os dias. Isso ele pensou enquanto coçava a barba de três dias. Pensou vagamente em comprar um terno novo. Na The New Look of the Year? Não, a loja estava fechada, aguardando um novo proprietário.


***


Chamou Edevaldo e Leonardo para discutir o caso. Mandaram vir duas pizzas grandes (grátis uma Gasosa Cini 2 litros). Maíra, atenta, apareceu sem ser chamada. Pegou um pedaço de pizza e ficou ouvindo, com um ar distraído. Não havia movimento na delegacia àquela hora.


Fez um balanço do que tinham. Duas mortes, em duas sextas-feiras, com seis tiros. Graças à repercussão dos crimes, a balística tinha trabalhado rápido. Todas as mortes tinham sido cometidas com a mesma arma, uma Glock 9 mm. Era um crime de ódio.


Eles formavam uma confraria de pedófilos, que se reunia regularmente, mas não se encontravam no dia a dia. As famílias não se freqüentavam, algumas das esposas sequer sabiam que se encontravam (caso de Ingrid, esposa do Dr. Maneco, que não era da cidade). Alfredo estava morando em Curitiba, com o filho. John Lennon da Silva estava internado em um hospital em Londrina, tratando de um câncer. João Apolinário estava pescando, incomunicável. E tão cedo não apareceria.


Ingrid possuía uma Glock 9 mm, que tinha convenientemente perdido. Mas ela tinha álibi para todas as sextas-feiras. Ela tinha uma empregada, Irina, que recebia visitas do namorado, Mateus, que fabricava linguiças e morava a poucos minutos do local do primeiro crime. Ele poderia ter furtado a Glock e ido ao local em poucos minutos, sem que ninguém na família soubesse. Mas qual seria seu motivo?


O motivo do crime era óbvio: vingança contra os pedófilos. Ingrid tinha a arma, mas não tinha motivo. Ela se dava bem com o marido, e, além disso, Maneco era uma alavanca para seus negócios. Mateus poderia ter furtado a arma e estava próximo ao local do crime. Mas qual seria seu motivo? E Irina?


Edevaldo olhou para umas folhas contendo os depoimentos dos empregados da Fazenda Dois Irmãos, coloridas com uma caneta marcadora, e falou:


- Todos os empregados sabem da Glock. E são todos antigos na casa. Nenhum deles pegaria na arma da patroa. O único estranho é o tal de Mateus, que é amigo ou namorado de Irina. Ele é o mais provável suspeito pelo desaparecimento da arma. E mora perto da cena do crime.


O delegado Plínio, impaciente, perguntou, sabendo da resposta:


- Onde anda Irina?


Mad Leo falou com um tom de mágoa.


- Ela foi visitar uns parentes no Paraguai, chefe. Está no relatório.


O delegado Plínio ignorou o investigador e falou direto para Maíra.


- Não sabemos nada de Irina. Não sabemos quem são seus pais, onde ela nasceu, quantos anos tem. Que tipo de ligação ela tem com Mateus? Levante tudo o que puder sobre ela. Isso é para ontem.


Precisavam fazer uma busca no fabricante de linguiças. Mateus poderia estar com a arma. Mas não tinham elementos para pedir uma busca e apreensão. A Juíza não daria a ordem com base em uma suspeita frágil e sem fundamentos. Afinal, por que motivo Mateus furtaria a arma e mataria Maneco e Marcos? Qual a ligação de Irina com o caso? Eles só tinham perguntas. Não havia final à vista. Estavam ainda em um beco sem saída.


Tomaram café enquanto fumavam. Plínio tirou a garrafa de uísque da gaveta. Maíra, para surpresa de todos, serviu-se de uma dose dupla. Vegetarianos também bebem.


Capítulo 11


IRINA IRINA


Irina Silva, aliás, Irina Holtz, aliás, a assassina.






Foram beber uma cerveja depois do expediente. No bar, Edevaldo esvaziou um copo e disse que ia para casa. Tinha que acordar cedo no dia seguinte. Leonardo ficou olhando enquanto ele se afastava e entrava no Celta azul. Tinha ciúmes do colega e um certo desprezo. Sentia-se superior ao colega intelectual, por ser um lutador e um exímio atirador. Ele era um homem de ação, ao passo que Edevaldo era um burocrata, um pecado mortal para ele. Maíra olhava para o copo de cerveja e pensava em quantos quilômetros de corrida seriam necessários para enxugar o peso que ela ganharia depois de alguns copos.


A investigadora Maíra não tinha perdido tempo. Irina Silva, segundo o registro de empregados da Fazenda Dois Irmãos, era um nome falso. Não havia nenhuma Irina Silva. Com ajuda de Leonardo ela conseguira os registros escolares no Colégio Estadual de Platônia, e lá, durante 6 anos, dez anos antes, estudara uma Irina Holtz, da 1.ª a 6.ª série, quando ela abandonara a escola, transferida para a cidade vizinha. Marcos da New Look lecionava lá, e no mesmo ano ele saíra.


Ela abriu a mochila e tirou um pacote de folhas xerox, onde se lia, na primeira página, em letras grandes: Sindicância. No alto, o logotipo da Secretaria da Educação. Como ela tinha conseguido, em tão pouco tempo, aquele material, permaneceria um mistério.


O delegado Plínio folheou rapidamente o documento. Era como um inquérito policial antigo, redigido em linguagem pomposa. A sindicância havia sido arquivada, porque o professor, Marcos, havia pedido demissão, e a menina envolvida tinha saído da escola, transferida para outra cidade pela avó. O inquérito não pudera ser concluído. Mas o que tinha sido apurado, parcialmente, era feio, muito feio. A menina se chamava Irina Holtz, e tinha onze anos quando houve a denúncia. Hoje, deveria ter 21 anos.


Irina Holtz havia sido transferida para uma escola na cidade vizinha, mas nunca chegara lá. Ela ficara no meio do caminho. E alguns anos depois, surgiu uma Irina Silva como empregada na Fazenda Dois Irmãos. Da avó nunca mais se teve notícia. Tudo levava à mesma conclusão: Irina Silva e Irina Holtz eram a mesma pessoa. Ela conectava todos os envolvidos. O motivo para o crime estava delineado. Vingança. O meio e a oportunidade tinham sido esclarecidos. Irina teria cometido os crimes, sozinha ou com a ajuda do namorado, Mateus. Ou Mateus matara os pedófilos para vingar o sofrimento da namorada.


Restava o mais difícil, obter as provas.


O delegado Plinio esvaziou o copo de uísque. Mad Leo pediu outra cerveja. Maíra olhou para ambos, sorridente. Ela tinha descoberto o elo perdido.



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