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Foto do escritorManuel Rosa de Almeida

O BRANCO NA BANDEIRA DE JAGUATIRICA


Um conto de Manuel Rosa de Almeida sobre maus hábitos na política...

O prefeito invadiu a sala de reuniões cheio de energia e um largo sorriso embaixo do bigode. Havia dois sujeitos sentados à mesa, que se levantaram imediatamente para cumprimentá-lo. Ele abraçou o primeiro com intimidade:


– Ramiro, como vamos?


– Bem, seu prefeito.


– Aquele bico de papagaio... anda incomodando?


– Felizmente não.


– O senhor... – disse virando-se para o terceiro, um homem jovem emoldurado em terno e gravata – é o representante da empresa de reprografia. Correto?


– Correto, senhor prefeito.


– Pois então deixe apresentar este aqui: Ramiro Olivença, presidente da comissão de licitação. Este é o homem!


Sentaram-se. Ramiro fez-se sério e profissional. Abriu uma pasta, folheou algumas páginas.


– Aqui, nosso modelo para o edital de licitação... Da maneira que está, penso que não é possível.


– Então – o prefeito virou-se para o homem de terno e gravata – o seu chefe disse que você teria a solução.


– E tenho. Estudei o modelo do edital e se me permite, Sr. Ramiro... – avançou folheando páginas – precisamos apenas acrescentar um parágrafo na cláusula décima-segunda.

– Décima-segunda... décima-segunda... – Ramiro chafurdou na memória.


– Trata das condições mínimas do equipamento. A redação está padronizada... Precisamos de algumas especificações a mais.


– O que sugere?


– Capacidade de reprodução: sugiro elevar no modelo standard para 240 cópias por minuto.


– Nós só estamos contratando o modelo standard.


– Precisamente. E nestas condições, senhor prefeito, só nós podemos oferecer.


– Quer dizer que tudo se resolve? – Perguntou o prefeito com um meio sorriso.

Ramiro refletiu por um momento. Em seguida balançou a cabeça, concordando com o representante da empresa.


– Ele tem razão, seu prefeito. Se acrescentamos este parágrafo, outras empresas não poderão competir, porque não possuem o maquinário adequado.


– E se mesmo assim tentarem?


– Aí barramos já na habilitação.


O prefeito levantou-se satisfeito, dando a reunião por encerrada.


– Então não se fala mais nisso. Ramiro... cuide de tudo.


O visitante ajeitava a gravata preparando-se para partir, com sorriso de missão cumprida. Achou de bom tom ser obsequioso com o prefeito.


– E quanto à outra parte?


– Aí eu trato com teu chefe.



– O senhor está de bom humor – cumprimentou a secretária quando ele entrou.


Era um homenzarrão corpulento. Abriu os braços jovialmente, amplitude de albatroz.


– E por que não estaria? Tudo vai muito bem em Jaguatirica.


Avançou com ar safado e abraçou a mulher. Mergulhou a boca ávida em seus cabelos, pescoço...


– Arlindo... Alguém pode entrar!


– Deixe disso... Ninguém se atreve a entrar no meu gabinete sem bater na porta.


– Mas não estamos no seu gabinete. Estamos na recepção...


– É verdade... – disse libertando-a. – Tem razão. Já ia me perdendo. É que a senhora, D. Josilene... – riu – a senhora é uma tentação... Sabe disso?


– Sei.


– Convencida. E falando nisso, o secretário da administração já confirmou nossa participação no curso de gestão orçamentária. Aquele que faremos na capital. Tudo certo, D. Josilene?


Ela se recompôs lançando uma piscadela óbvia demais:


– Tudo certo, senhor prefeito.


– A senhora possui competências que necessitam capacitação, pelo bem da nossa administração.


– Sim, preciso ser capacitada...


O telefone tocou, interrompendo os clichês e a imaginação de ambos.


– Prefeitura de Jaguatirica, pois não? Sim. Sim. Um momento...


Ela cobriu o telefone e segredou:


– É o prefeito de Curvelinho.


– Transfira para minha sala, D. Josilene.



Ele atendeu ao chamado afundando-se numa cadeira confortável, protegida por imensa escrivaninha de mogno. O prefeito de Curvelinho era homem expedito, de ir logo ao assunto.


– Arlindo, o caso é o seguinte... Sabe aquele menino lá... o teu sobrinho?


– Juliano, meu sobrinho. Que tem ele, Agenor?


– Pois é. Vou ter que exonerar o menino.


– Santo Deus! Mas por quê? Diga homem...


– Ele tá se envolvendo em política por aqui. E do lado errado.


– Juro que não tô sabendo de nada. O que foi que houve?


– Seu menino participou de uma reunião do partido da oposição. Fez até discurso contra minha pessoa.


– É uma desfeita! Fique calmo. Puxo a orelha dele e tudo se ajeita.


– Aí é que está o problema. A coisa foi muito feia. Já passou da fase do jeito. O pessoal do meu partido exige a exoneração dele ainda hoje.


– Tenho certeza que você acalma as coisas, Agenor.


– Olha, Arlindo, você é meu amigo, meu compadre. Mas desta vez não tenho como limpar a barra do seu menino. Até já assinei o ato de exoneração.


A escrivaninha recebeu condescendente o punho violento. A agenda e o grampeador foram ao chão. O prefeito levantou-se indignado:


– Como é?


– Lamento, compadre. Está além das minhas forças...


– Ah é? Mas então vai sobrar pra sua nora.


– Minha nora? O que é que a Emília fez de errado?


– Nada. Mas se você manda embora meu sobrinho...


– Isso não tá certo, Arlindo. Não mesmo. Ela não é competente?


– Mais ou menos...


– Como assim, mais ou menos?


– Fosse competente passava no concurso, não é verdade?


– Mas você mesmo disse que ela não fez nada de errado!


– E não fez, não fez mesmo. Mas eu, como é que fico? Como explico pra minha irmã que o filho dela perdeu o cargo em comissão aí em Curvelinho?


– Isso é problema seu. Onde está sua ética, Arlindo?


– Ética o cacete. Quando acertamos dissemos: uma mão lava a outra... qual mão você está lavando? Resolva isso ou sua nora sai amanhã.


– Não tem como. Está feito. Quer saber? É por causa de tipos como você que o Brasil não vai pra frente!


O prefeito de Jaguatirica jogou o telefone na parede. O aparelho resvalou no brasão do município e derrubou a bandeira tricolor: verde para as matas, marrom para a argila das olarias e branco para a pureza do povo de Jaguatirica.


– O filho da puta desligou na minha cara! – Explodiu.


A secretária abriu a porta preocupada com o barulho:


– Algum problema, senhor prefeito?


– Nada que não se dê um jeito, D. Josilene. Sossegue.


A mulher permaneceu pregada na soleira da porta.


– Perdeu alguma coisa? – O bom humor havia desaparecido.


– Não... É que está aí o seu Benedito, querendo trocar uma palavrinha com o senhor.


– Que Benedito, criatura?


– O administrador do cemitério, Arlindo. É por causa daquele desconto que vão fazer no salário dele.


– Despache o homem.


– Faria isso, Arlindo, mas já é o sexto dia seguido que o homem vem aqui.


– Diacho...


– Resolve logo isso... Lembre que servidor também é eleitor.


O prefeito jogou-se novamente na cadeira, resignado.


– Mande entrar.


Quem entrou foi um sujeito mirrado, usando um paletozinho puído. Avançou em passinhos miúdos, mantendo a cabeça baixa, escondendo o bigodinho fino que encimava os lábios. Vinha com o chapéu de palha na mão, que girava nervosamente.


– Boa tarde, seu prefeito.


– Em que posso servi-lo, seu Benedito?


– É a questão do tal desconto, seu prefeito. Diz que vão tirar do próximo salário...


– Gostaria muito de ajudá-lo, Benedito. Juro que gostaria. Mas nós o tratamos com justiça.


– Justiça?


O prefeito não gostou da dúvida que soou naquela pergunta. Acionou o interfone:


– Dona Josilene!


– Pois não? – Ouviu-se a voz metalizada.


– Traga aqui, por favor, o processo do Sr. Benedito.


– Só um minuto.


– Sim, senhor – disse como se não houvesse interrupção. -- Justiça. A coisa toda começou porque senhoras da comunidade reclamaram que encontraram o cemitério fechado às 18:50 e não puderam visitar o túmulo de seus entes queridos. Pode isso?


– 18:50? Nunca, seu prefeito...

– Veja bem, Benedito – cortou. – Tudo que o senhor tem que fazer é abrir o cemitério às 8:00 e fechar às 19:00.


– Não.


– Não o quê?


– O senhor me desculpe, mas isso não é tudo que tenho que fazer...


Que impertinência, pensou o prefeito. Mas servidor também é eleitor...


– Não é não?

– Manter os registros, fazer as covas, cuidar da jardinagem – ia girando o chapeuzinho enquanto falava – lavar as lápides, caiar os túmulos velhos, expulsar os meninos que vêm fazer estrepolias no cemitério... Que eles fazem estrepolias, ou não fazem?


– Fazem, lá isso fazem... – reconheceu. Súbito uma ideia lhe veio à mente.


– Espere um pouco... Se o senhor está aqui, quem está cuidando do cemitério?


– Meu sobrinho.


– E nos outros dias que o senhor esteve aqui?


– Meu sobrinho. Mas o Lauro é de confiança, não vai abandonar o posto, lhe garanto.


– Mas ele é servidor público, Benedito? Ele foi contratado pra isso? Eu posso reclamar com ele se algo der errado?


Benedito baixou ainda mais a cabeça. As abas do chapéu foram amassadas.


– Não, senhor.


– Pois então.


– Mas o que eu podia fazer, seu prefeito? Precisava falar com o senhor e o senhor nunca vai me fazer uma visita...


– Aposto que o senhor quer uma visita minha, não é mesmo? De cúbito dorsal e flores no peito!


– Como?


– Morto, seu Benedito! Abotoado! Canelas esticadas e paletó de madeira!


– Deus me livre! Não, seu prefeito. Não quero isso não... Que seria de Jaguatirica?


Uma pancadinha na porta interrompeu a altercação. A secretária avançou e colocou um processo amarelo sobre a escrivaninha. Sorriu e retirou-se. O prefeito apanhou o processo administrativo e pôs-se a falar macio. A última frase do homem tinha aplacado sua ira.

– O senhor foi investigado por uma comissão de sindicância e julgado por uma comissão de processo administrativo, não sabia?


– Pois claro que sabia... Até depoimento dei...


– Então veja... Eu reconheço seus bons e muitos serviços, Benedito. Mas isso não lhe dá o direito de fechar o cemitério antes da hora. Pra tirar tudo a limpo, os membros da comissão foram duas vezes investigar e conferir quando o senhor de fato fechava o cemitério. Numa ocasião, o senhor fechou às 18:56 e na outra às 18:58. Na média, concordaram que o senhor fechava o cemitério com três minutos de antecedência.


– E por três minutos vão me descontar tudo aquilo?


Arlindo Ortigueira não se fez de rogado:


– A conta está aqui, homem, tudo certinho. E contra a matemática não há argumento.


Virou as páginas até encontrar o que queria:


-- Três minutos vezes seis, já que o senhor não trabalha aos domingos, são dezoito minutos por semana. O mês tem quatro semanas e meia, o que dá oitenta e um minutos por mês. No ano são novecentos e setenta e dois minutos. E em cinco anos são quatro mil oitocentos e sessenta minutos, que representam oitenta e uma horas. São estas oitenta e uma horas que estamos descontando do seu salário. Dá uns dez dias...


– Mas...


– E homem... fique satisfeito. O senhor trabalha lá há mais de vinte anos e só estamos descontando cinco anos. Até os malfeitos prescrevem, seu Benedito, sorte sua!


Aquilo punha um tom definitivo na coisa toda, Benedito entendia. Rolou o chapéu de palha ainda uma vez e arriscou com a voz sumida:


– Mas, seu prefeito, não tem como dar um jeito?

O prefeito olhou para ele com olhos arregalados e sincera decepção na voz:


– Benedito – respondeu, meneando a cabeça. – Seu Benedito... O que está dizendo? Homem, isso é dinheiro público!


O rosto de Benedito ganhou um vermelho vivo, de quem é flagrado em pleno ato e tem consciência disso.


– Perdão, seu prefeito. Perdão. Não está mais aqui quem falou...


Virou-se e partiu no mesmo passinho miúdo.

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