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Foto do escritorHatsuo Fukuda

PRÍNCIPE DAS ARÁBIAS


O caso das jóias contrabandeadas da Arábia Saudita pelo ex-presidente Bolsonaro – que adicionou aos seus inúmeros crimes também o do descaminho (que o vulgo chama de contrabando) -, trouxe à tona a família real saudita, os Saud, cujo fundador deu nome ao reino. De como um príncipe árabe reagiu à adversidade e construiu um grande reino, para si e seus descendentes.


Imagem de wikipedia.

A península arábica estava dividida entre os Emires do Norte (Ibn Rashid) e do Sul (Ibn Saud). Abdul Aziz, o príncipe e herdeiro da família Saud, tinha quinze anos quando sua capital, Riad, foi tomada por Rachid. A família refugiou-se no Kuwait. Durante onze anos a família Saud roeu o pão seco que comem os exilados. Em 1902, auxiliado pelo Sheik do Kuwait, Abdul Aziz Saud reuniu um bando de seguidores e os levou, após meses de andanças, até Riad, que foi tomada em um golpe na madrugada.


O grupo, constituído por sessenta guerreiros, chegou aos arredores de Riad e se escondeu nas colinas próximas, nas plantações de tamareiras que circundavam a cidade. Abdul Aziz Saud colocou 30 homens sob a chefia de seu irmão Mohamed, para cuidar dos camelos. Eles foram instruídos para aguardar até o meio-dia do dia seguinte. Caso o empreendimento não desse certo, eles deveriam fugir, pois os demais já estariam mortos. Vinte e três homens seguiram Ibn Saud até as muralhas da cidade, na escuridão da noite, carregando um tronco de tamareira para escalar os muros. Durante duas horas, à luz da lua, eles percorreram os caminhos labirínticos que levavam à cidade: trilhas afundadas, fontes, canais de irrigação, abrigos de folhas de tamareiras. No muro, o líder separou novamente os combatentes: nove seguiram em frente, e quinze permaneceram guardando os muros. Os nove seguiram pelas escuras ruelas de Riad, seguidos por latidos de cães, aqui e ali, mas nenhum alarme foi dado. Eles chegaram até a cidadela, onde morava o governador. Mas qual das casas era a dele?

Eles se amontoaram, cabeças juntas, o vapor branco de sua respiração fluindo no vento frio do norte, que agitava as pontas soltas de seus lenços de cabeça xadrez e envolvia as saias de seus longos thobes brancos contra suas pernas. Todos estavam agasalhados para se proteger do frio e carregados de armas: fuzis envoltos em pele de cabra curtida, pendurados no ombro ou agarrados pelo cano, com a coronha na poeira; espadas enganchadas no alto, adagas com cinto parcialmente escondidas sob coletes acolchoados. Um dos primos de Ibn Saud, Abdullah ibn Jiluwi, baixo e de barba espessa, apoiava-se em uma forte lança com ponta de ferro.


Abdul Aziz lembrou-se que um vendedor de vacas, Juwaisir, morava por ali. Bateram em sua porta. Uma mulher respondeu: “Quem é? O que quer, a esta hora? Um homem honorável não bate à porta de uma casa respeitável à meia-noite. Vá embora!


Eles acabaram entrando, e de lá invadiram a casa de Ajlan, o governador, adagas na mão, e entraram no harém. Uma das mulheres foi acordada por Ibn Saud. Seguiu-se o diálogo rápido:


Oh! É você, Pai dos Turcos. O que você quer? Você está no harém.”


“Eu quero o seu marido, mulher. Onde ele está?”


“Eu casei com ele somente depois que você me ignorou. Ele está no forte com seus homens. Quando ele voltar após a oração da manhã, melhor você ter ido, se dá valor a sua vida.”


Os ocupantes da casa foram presos em um quarto, e os demais combatentes foram chamados. Juntos, tomaram café, comeram tâmaras e pão, servido por escravos trêmulos, e aguardaram o amanhecer.


Quando o canto do muezim os chamou, os guerreiros se levantaram de seu descanso pré-batalha e iniciaram o ritual da oração matinal, ajoelhando-se e se prostrando em direção à Meca. Ibn Saud e ibn Jiluwi observavam o forte enquanto tomavam café. Depois de uma longa espera, o pesado portão do forte se abriu e Ajlan ar Rashid saiu, acompanhado de seis guardas, todos armados, mas ignorantes do perigo que os espreitava. Abdul Aziz o viu, e murmurou: “Vou matá-lo.” Abriu a porta e saiu gritando o seu grito de guerra: “Akhu Nura!” (“Irmão de Nura!” Nura era a sua irmã favorita.

Na mellée que se seguiu, Ibn Saud feriu Ajlan no ombro. Engajados em uma luta corporal, Ajlan atingiu Ibn Saud com um golpe que o atingiu na virilha. Ibn Jiluwi jogou sua lança, mas ela não atingiu o alvo. Ajlan conseguiu voltar ao forte por um postigo, seguido por Ibn Saud e Ibn Jiluwi. Os portões foram abertos por ambos, e os guerreiros entraram, espadas em punho. Ibn Jiluwi deu o golpe final em Ajlan. Os demais, alguns resistiram e outros se renderam, da forma tradicional, naqueles tempos: baixando suas armas, colocando ambos os polegares entre os dentes, com os dedos abertos.


Ibn Saud, embriagado pela vitória, jogou a cabeça de Ajlan na rua, gritando:


Quem está ao meu lado? Quem? Seu Príncipe está com vocês novamente!”


A batalha durou menos de uma hora. Metade dos oitenta defensores morreu ou ficou ferido. Ibn Saud teve dois mortos e quatro gravemente feridos. Ano após ano, Ibn Saud recuperou os territórios que haviam sido de seus antepassados, tornando-se uma lenda entre os habitantes do deserto. Em 1932 o Reino da Arábia Saudita foi formalmente criado, e em 1938 o petróleo foi descoberto nas terras do reino. Uma nova era começava.



Imagem de KPBS


Esta narrativa foi retirada do livro The Arab War, de Gertrude Bell. É uma coletânea de artigos publicados no Arab Bulletin, um sumário publicado pela Inteligência Britânica no Cairo pelo Arab Bureau, tendo como foco a guerra contra a Turquia (durante a Primeira Guerra Mundial). O mais famoso dos agentes do Arab Bureau foi T. E. Lawrence, um arabista, arqueólogo e depois, quando a necessidade obrigou, chefe guerreiro, político, diplomata e escritor, que Hollywood imortalizou como Lawrence da Arábia. Gertrude Bell, menos conhecida, mas não menos culta e sagaz, foi uma escritora, viajante, oficial política, alpinista, arqueóloga, cartógrafa, e poliglota (era fluente em árabe, persa, francês, alemão, italiano e turco). Na Amazon Books há inúmeros livros dela e algumas biografias. Ela é Lawrence da Arábia de saias, ou, talvez, o verdadeiro Lawrence da Arábia.

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