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Foto do escritorHatsuo Fukuda

STALINGRADO: O LIVRO


O monumento Mãe Pátria Chama, em Stalingrado, guarda um segredo. Vasily Grossman, o escritor, está lá.



Vasily Grossman em 1945, imagem de Wikipedia.



O livro Stalingrado, de Vasily Grossman, suscita inúmeras polêmicas. A mais óbvia, aliás destacada no comentário de Vargas Llosa (no Estadão), é a comparação da obra (e Life and Fate) com Guerra e Paz, de Tolstoi. Esta comparação é recorrente. Robert Chandler, que assina a tradução em língua inglesa (com Elizabeth Chandler), em sua introdução, inicia o texto com a comparação. O próprio Grossman, no livro, se remete a Guerra e Paz inúmeras vezes, e, dada a sua experiência literária, não o fez por acidente. Grossman, em uma carta à filha, dizia que era o único livro que leu e releu durante aqueles anos. Muitos dos personagens que fizeram a guerra tiveram Guerra e Paz como o livro (para alguns, o único) a ser lido e relido durante aqueles anos, particularmente para os sitiados naqueles longos seis meses que durou a batalha. Chuikov, o general que comandou as forças em Stalingrado, tinha os generais descritos por Tolstoi em Guerra e Paz como seus modelos.


Quando iniciei a leitura de Stalingrado, Guerra e Paz, naturalmente, era o texto em minha mente, desde as primeiras páginas. Para mim, não há dúvidas: é um Guerra e Paz soviético, ou seja, comunista. E é tão grande e comovente como.


Para aqueles não familiarizados com o realismo socialista, a literatura canônica do stalinismo, dos anos 30 até os anos 50 do século passado, o texto será, por vezes, chato. É patriótico, é progressista, é antifascista, é francamente socialista; enfim, por vezes soa discurseiro como um bolsonarista ou petista fanático.


O realismo socialista era a única escrita aceitável nos anos de Stalin e, como tal, era a única permitida aos escritores comunistas lá e em todo o mundo. No Brasil, seu padrão era o de Jorge Amado em Subterrâneos da Liberdade, que romantiza a luta dos comunistas nos anos da ditadura Vargas (Amado, posteriormente, com a desestalinização, retornou às suas origens baianas, entregando deliciosas histórias – pornô soft – que fizeram a alegria dos adolescentes masturbadores da época). Grossman, um escritor famoso na União Soviética, que durante os anos da guerra foi correspondente do jornal Estrela Vermelha, do Exército, não escreveria fora da linguagem canônica. Assim, para os não-comunistas poderem apreciar o livro, resta encarar os discursos socialistas como homenagem obrigatória à época – assim como se lê as longas discussões teológicas em romances situados na Idade Média européia. E naturalmente, é também um testemunho de um grande escritor à estupefaciente transformação por que passou o ex-império czarista nos quinze anos anteriores à guerra, transformação feita a ferro e fogo, com sangue e lágrimas, sob a liderança de Stalin. Transformação real (não era pensamento mágico latino-americano), e Grossman, com seus personagens, dá voz ao seu povo, tanto aos beneficiários quanto aos seus inimigos. Assim como em Tolstoi a fé religiosa de alguns personagens nos comovem, também a fé socialista em Stalingrado.


Mas Grossman era antes de tudo um escritor fiel a si mesmo; não era um membro do aparelho de agit-prop do Partido. Dizem que sua memória era excepcional (ele não fazia anotações para não constranger as pessoas com quem falava), assim como a capacidade de interagir com os seus entrevistados. Por isso mesmo, seus artigos no jornal, durante a guerra, eram lidos com avidez e passavam de mão em mão até virarem farelo. Como jornalista de um órgão estatal nunca foi um simples repassador de informações oficiais, por que o faria em seus trabalhos literários? Esta empatia está presente nos milhares de personagens do livro, além da subjacente e às vezes clara visão politicamente incorreta, contrariando a linha justa do Partido.


Pagou o preço, claro.


Life and Fate jamais foi publicado enquanto viveu. O livro foi confiscado pela KGB e Suslov, o ideólogo do Partido, com quem Grossman foi conversar, disse a ele que o livro não poderia ser publicado nos próximos duzentos ou trezentos anos. Grossman contrabandeou o livro, em microfilme, para o exterior, com a ajuda de Andrei Sakharov (Prêmio Nobel de Física), e o livro veio a ser publicado em 1980, na Suíça (Grossman morreu de câncer, em 1964).



A Mãe Pátria Chama, imagem de Redit.


No morro Mamayev Kurgan, que foi palco de inúmeras batalhas durante o cerco (o morro foi tomado e retomado inúmeras vezes), e onde foi construído o monumento Mãe Pátria Chama, em Volvogrado (Stalingrado durante a guerra), estão enterrados mais de trinta mil soldados russos, quase todos anônimos. Lá estão o Marechal Chuikov, o comandante das tropas soviéticas, e o sniper Vasily Zaitsev. Nas paredes que levam ao monumento, lê-se um diálogo:


Um soldado alemão pergunta: “Eles estão nos atacando novamente. Eles são mortais?” Dentro do monumento aparece a resposta de um soldado soviético: “Sim, nós somos mortais, e poucos de nós sobrevivemos, mas todos cumprimos nosso dever patriótico para a sagrada Mãe Rússia.


Este diálogo foi escrito por Vasily Grossman, publicado pela primeira vez no Estrela Vermelha, e depois no Pravda (jornal oficial do Partido) não creditado até hoje no monumento.


Mas Grossman sobreviveu ao terror stalinista (ele teria sido pego, não tivesse Stalin morrido), e ao degelo de Kruschev. Ele sobreviverá a isso também. A Mãe Pátria o consola.


Stalingrado e Life and Fate, de Vasily Grossman, você encontra na Amazon Books. Há uma edição em português de Vida e Destino, também na Amazon, por R$ 86,32. Acho que é uma boa idéia também ler ou reler Guerra e Paz, de Tolstoi. Fica a sugestão para os não carnavalescos. Grossman era um judeu ucraniano russificado, o que o tornava um alvo óbvio (além das posições heterodoxas ao Partido) para o último expurgo de Stalin, contra uma suposta conspiração de médicos judeus. A morte de Stalin e a subsequente desestalinização promovida por Kruschev o salvou.

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