O verdadeiro futebol do povo...
Imagem deKeith JohnstonporPixabay
Reza a lenda que temos o mais poderoso futebol de várzea do país. Há mais de quarenta times amadores estruturados e funcionando em Curitiba e sua região metropolitana. Os campeonatos - organizados pela Federação Paranaense de Futebol - são disputados regularmente desde 1941. Os jogos importantes, decisivos, têm cobertura do rádio e da televisão. E já há muitos anos existe cobertura ampla da várzea na rede por meio de sites especializados.
Alguns times de várzea são verdadeiras potências futebolísticas. O Trieste, de Santa Felicidade, possui um estádio para 4 mil torcedores. Podemos citar o Combate Barreirinha, o Iguaçu, o Santa Quitéria e tantos outros, como times grandes. Por times grandes entendemos aqueles que disputam regularmente títulos da primeira divisão amadora, bem como a Taça Paraná ( torneio estadual também disputado anualmente ) e que, não raro, apresentam ex-jogadores profissionais em seu elenco.
Mas isso diz pouco do futebol de várzea. Se o futebol é a catarse de um povo, como já foi apregoado, na várzea muito mais. Devemos entender a palavra catarse por seu sentido psicológico, que significa liberação de emoções ou tensões reprimidas. A várzea é o povo pulsante, reunido em fins de semana de futebol, cerveja, risadas e brigas. Nestas risadas e brigas regadas com cerveja ocorre a catarse do povão, que certamente libera suas emoções, relaxa tensões e esquece os problemas por algumas horas.
Joguei na várzea por dois anos, há muito tempo atrás, quando as pernas ainda davam conta de correr noventa minutos. Eu não era mais que um volante raçudo, marcador implacável que sabia chegar junto - todas características muito apreciadas na várzea. Defendi as cores, digo as quatro cores do Paissandu, tetracolor do boqueirão. Nosso time não era brilhante, não chegamos a disputar as primeiras posições da liga. Ainda assim, minha curta passagem pela várzea deixou lembranças marcantes…
Lembro, por exemplo, da extrema falta de segurança em que atuavam os árbitros escalados pela federação para apitar os jogos. Quase sempre apitavam sem qualquer proteção. Em jogos importantes, por vezes contavam com a presença de dois policiais militares. O meu Paissandu era composto por colegas bem encrenqueiros. Dificilmente terminávamos a partida sem uma boa pancadaria… Quando o barraco pegava fogo, eu costumava sentar encostado a uma trave de futebol e passar incólume pelos socos e chutes que havia em volta. Era como um código: o cara sentado é de paz, não quer brigar com ninguém… E o pessoal era democrático o suficiente para respeitar isso.
O único real sufoco que passei foi quando arrancamos do Combate Barreirinha um empate na casa deles. E os pontos perdidos, para eles, eram decisivos na disputa pelo título. Enquanto jogávamos e segurávamos o placar, nosso time aspirante ficava no bar ao lado do campo, bebendo e xingando os adversários. Assim, quando o apito final soou, a paciência da torcida e dos jogadores do time da casa acabou. Começou uma pancadaria das mais duras que tinha visto. Nós que estávamos em campo conseguimos entrar no vestiário, pouco mais que um cubículo de doze metros quadrados. Havia uma geladeira num canto que usamos para fazer barricada. A multidão enfurecida forçava a entrada com chutes e empurrões na porta e meus companheiros faziam força em sentido contrário. Um dos meus colegas de time achou uma barra de metal e colocou-se atrás da geladeira, pronto para empalar o primeiro invasor. Eu fiquei sentado num canto, observando a cena e pensando: se esta porta abre… Felizmente não abriu. Não creio que, neste caso, respeitariam minha posição pacífica de neutralidade. Depois de cinco minutos os ânimos serenaram aos poucos. Uma hora depois pudemos sair do vestiário sem sofrer agressões.
Era de se esperar, por tudo que contei, que abandonasse o futebol de várzea. Talvez fossem os roxos na canela deixados pelos zagueiros rivais, que antes de curar eram renovados por novas faltas, talvez fosse a pancadaria que havia em quase todos os jogos. Mais provável é que eu não era, confesso dizer, povão o suficiente para o cenário conjunto daquelas disputas. Ainda assim, trago com carinho a lembrança daqueles tempos e entendo como poucos a catarse do povo em toda amplitude do termo. Afinal, a várzea oferece ao nosso povo tão sofrido, algumas das poucas alegrias que podem ter.
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