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Foto do escritorManuel Rosa de Almeida

DE SONHOS E FRACASSOS

Um conto de Manuel Rosa de Almeida sobre a tirania dos sonhos não realizados.

Imagem de StockSnap por Pixabay

Há três meses a cena se repetia. Bastava as nuvens se avolumarem a leste, os nimbus avançarem avassaladores do sul em meio a um vendaval apocalíptico, qualquer outro sinal de tempestade próxima, para Antônio parar tudo que estava fazendo, agarrar uma longa vara de metal e correr para o meio do pasto. Ali, sob o olhar lacrimoso de Josefa, completamente encharcado, ficava andando com a haste verticalmente erguida, trovões ribombando, a princípio distantes, em breve estourando ao seu redor por minutos, aguardando o resultado tão ansiado: a morte por um raio.


-- Venha doutor -- implorou Josefa ao celular.


O doutor prezava cumprir promessas. Por isso, embarcou no carro e rapidamente seguiu para o sítio, em meio ao temporal. Havia também um leve componente de remorso, já que o estranho comportamento do lavrador começou desde que, numa conversa cercando um bule de café, explicara a ele que havia um código e um nome para o episódio de falecimento por raio: CID 10 - X33 - Fulguração. Josefa assegurou ao doutor que a busca pelo encontro fatal começou naquela maldita conversa.


O carro estaciona no terreiro lamacento. Correndo para fugir da tempestade renitente, o doutor passa pelas duas estufas de fumo e entra correndo na casa simples de agricultor. Com os olhos molhados, Josefa aponta pela janela. O doutor avança ao vidro e contempla a cena inverossímil. Um velho de 68 anos, roupas pesadas de chuva, braço esticado ao céu apontando uma vara qual Dom Quixote, andando em meio ao pasto a cerca de 50 metros de distância.


-- É sempre assim?


-- Desde aquela conversa. O que, por Deus, o senhor disse a ele, doutor?


Ele pesou se havia algum tom de censura na pergunta. Concluiu que não, só desespero.


-- Nada -- mentiu.


-- O senhor vai falar com ele?


-- Assim que a tempestade passar -- que eu não sou louco, pensou.


A tempestade amainou em cerca de cinco minutos, a massa deslocando-se para noroeste. Antônio já havia baixado a vara e retornava para casa com ar vencido. O médico achou melhor conversar com o homem longe da presença de Josefa.


-- Vou lá -- falou e saiu correndo, antes que ela oferecesse os ouvidos do bule de café.


Logo alcançava Antônio que parou para recebê-lo com ar surpreso. A chuva agora era fina garoa.


-- O que faz aqui, doutor?


-- Eu é que pergunto. O que está fazendo, homem?


-- O que o senhor vê: caçando um raio.


-- Você vai morrer!


Ele sorriu. Seu olhar ganhou um brilho alucinado:


-- Sei. Fulguração.


-- Quê?


-- Foi o senhor que me disse. A causa da morte será fulguração.


-- Não estou entendendo.


-- Quero lá no meu atestado de óbito. Causa da morte: fulguração.


-- Continuo não entendendo. Prá que isso, Antônio?


-- O senhor sabe há quantos anos sou lavrador?


-- Não. Imagino que mais de quarenta.


-- Mais de cinquenta, doutor. Desde menino.


Antes que o médico atalhasse qualquer coisa, desembuchou de vez, as palavras escapando como torrente que rompe açude mal feito.


-- Eu queria ser escritor, o senhor sabia?


-- Não -- o médico não fazia ideia.


-- Quando menino, no ginásio, o professor de português elogiou uns versos meus…


E ficou com aquela reminiscência muda, os versos rondando a memória…


Dos derradeiros raios do sol o brilho

Capturado pelo pendão de milho…


O médico estava se sentido desconfortável, sem entender o que se passava na cabeça do velho lavrador. Uma insidiosa vozinha lhe ciciava no ouvido: culpado, culpado…


-- Por anos escrevi poemas, contos, até um romance escrevi. Mandei originais para dezenas de editoras e nada.

Pensava que devia ser persistente, perseguir meus sonhos, como sempre ensinam os vencedores na televisão. Mas nunca se interessaram por meus escritos.


-- As editoras… -- como ajudo este homem? -- … só publicam gente famosa. Preocupam-se mais com o lucro certo do que com a qualidade da obra.


-- Não é isso, doutor.


-- Não?


-- Não. Eu sou ruim.


O médico não podia negar a frase categórica. Nunca lera um escrito de Antônio, sequer se interessava muito por literatura.


-- Mas o que isso tem a ver com levar um raio na cabeça?


-- Veja… sempre quis brilhar nas letras. Ao menos no meu atestado de óbito terei fulgurado.


-- Ah…


Para o doutor a explicação era absurda. O homem estava claramente deprimido e precisava tratamento. Resolveu seguir outro caminho.


-- Pense no que você realizou, homem.


-- E o que foi que eu realizei?


-- Suas terras… sua família…


-- Estas terras, doutor, herdei de meu pai. Não há mérito nisso. É terra pouca, vinte hectares. Com este pedacinho de chão, perdido no Brasil, a única lavoura que me dá algum sustento é o fumo. Há quase trinta e cinco anos planto fumo… planto, capino, colho, puxo a zorra, daí separo as folhas, seleciono, depois dias e noites e madrugadas assando as folhas, mantendo o forno da estufa na temperatura certa… vidinha besta.


-- Então. É um belo trabalho.


-- É como sobrevivo. A companhia vem e dá o valor que entende aos meus fardos e eu vou vivendo. Produzo pra companhia me explorar e vender vício.


O médico viu que o caminho não era bom.


-- E os filhos? Você criou quatro, não foi?


-- Foi.


-- Então...


-- Acho que são boas pessoas, não sei.


-- Claro que são.


-- O senhor os conhece?


-- Não -- admitiu.


-- Nem poderia. Já faz cinco anos que nenhum vem nos ver. A Aninha foi a última, no Natal de 2014. Eu não ligo, mas isso parte o coração da Josefa.


-- Sua esposa -- agarrou-se ao último argumento -- vai sofrer se você morrer.


-- Já pensei nisso. Temos a aposentadoria. Fiz um seguro de vida pra ela. Não vai passar necessidade.


-- Mas vai ficar sozinha.


-- Isso vai acontecer, mais cedo, mais tarde. Não vou durar pra sempre.


Uma ideia salvadora ocorreu ao médico, assim, do nada.


-- Mas se você morrer como está tentando, Antônio, o seguro não vai pagar nada.


-- Por quê?


-- Porque você estará deliberadamente causando sua morte. E suicídio não paga seguro.


Antônio estacou. Segurou o braço do médico e falou sério:


-- E como vão saber? O senhor vai falar alguma coisa?


-- Não -- culpado, culpado -- claro que não.


-- Então é isso.


A conversa encerrou por aí. O médico despediu-se do casal, recusando o café oferecido por Josefa. Mas antes de partir, já dentro do carro, Josefa chegou à janela do motorista.


-- E então, doutor?


Ele procurou por Antônio. Estava desaparecido dentro do rancho.


-- Vai passar. Mas se conseguir fazê-lo tomar o remédio -- escreveu rapidamente a receita de um antidepressivo -- pode ajudar.


-- Obrigado, doutor.


Acionou o motor e antes de partir ainda disse:


-- Olhe, mesmo tentando, é difícil ele conseguir morrer por um raio. Fique tranquila. Ele não vai morrer.


Mas morreu. Menos de mês passou e Josefa o chamou. Antônio havia morrido, mas não de raio.


-- Ele estava no pasto, na tempestade, com aquela maldita vara de metal, como tinha feito várias vezes -- contou Josefa. Mas quando a chuva passou, ele não voltou pra casa. Ficou lá, olhando pro céu, chacoalhando a vara. Parecia muito bravo, gritando consigo mesmo. Uma doideira. De repente, tropeçou num toco e bateu a cabeça numa pedra. Isso. Não pude fazer nada.


O que Josefa não entendeu é que, em seus últimos momentos, Antônio imprecava contra Deus:


-- Quanto tempo? Quanto tempo, Senhor, pra atender meu pedido? Vou ter que ficar me molhando mês após mês, metal na mão, pra você mandar um raio certeiro?


E continuava:


-- O Brasil é o país das descargas elétricas. Todo dia o senhor leva um inocente em meio a um relâmpago. E o desgraçado nem quer, nem sabe por onde lhe chegou a morte. E eu que quero, nada? É errado… é injusto. Errado e injusto como a minha vida…


Finalmente, brandia a vara de metal ameaçadoramente contra os céus, cada vez mais próximo do toco e da pedra:


-- Passei a vida lhe pedindo uma chance com meus escritos! A vida inteira! E o Senhor atendeu? Não. Nunca. Nem um poeminha publicado num jornal qualquer… Agora, 68 anos, só quero morrer…


E morreu. Agora, cabia ao médico preencher o atestado de óbito. Pesaroso, escreveu no documento:


CID 10 - SO2 - Fratura do crânio e dos ossos da face.


Achou que aquilo não faria o gosto de Antônio. Imaginou acrescentar: tropeçou num toco e bateu a cabeça numa pedra, mas caiu com graça e estilo.


-- Isso é ridículo.


Então cogitou sinceramente em alterar o documento, preenchê-lo com o CID da fulguração. Mas sabia que estaria cometendo um crime, falsidade ideológica. E declarar morte por raio certamente chamaria a atenção.


-- Perdão, Antônio -- suspirou.


Meses depois, passava ao lado do pequeno cemitério. Um impulso inexplicável o levou a procurar a sepultura de Antônio. Com algum custo, acabou encontrando o lavrador em seu último leito. Era um túmulo simples, mas digno. Havia até uma lápide de granito, talvez financiada com o dinheiro do seguro. O médico julgava-se imune a sentimentalismos. Mas uma lágrima rolou, depois que a garganta apertou. Aparentemente, Josefa conhecia os sonhos do marido. Pois na pedra fria estava escrito:



ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA

22/04/1950 - 03/02/2019


Lavrador e poeta


Dos derradeiros raios do sol o brilho

Capturado pelo pendão de milho…

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