Um conto de Manuel Rosa de Almeida sobre a tirania dos sonhos não realizados.
Há três meses a cena se repetia. Bastava as nuvens se avolumarem a leste, os nimbus avançarem avassaladores do sul em meio a um vendaval apocalíptico, qualquer outro sinal de tempestade próxima, para Antônio parar tudo que estava fazendo, agarrar uma longa vara de metal e correr para o meio do pasto. Ali, sob o olhar lacrimoso de Josefa, completamente encharcado, ficava andando com a haste verticalmente erguida, trovões ribombando, a princípio distantes, em breve estourando ao seu redor por minutos, aguardando o resultado tão ansiado: a morte por um raio.
-- Venha doutor -- implorou Josefa ao celular.
O doutor prezava cumprir promessas. Por isso, embarcou no carro e rapidamente seguiu para o sítio, em meio ao temporal. Havia também um leve componente de remorso, já que o estranho comportamento do lavrador começou desde que, numa conversa cercando um bule de café, explicara a ele que havia um código e um nome para o episódio de falecimento por raio: CID 10 - X33 - Fulguração. Josefa assegurou ao doutor que a busca pelo encontro fatal começou naquela maldita conversa.
O carro estaciona no terreiro lamacento. Correndo para fugir da tempestade renitente, o doutor passa pelas duas estufas de fumo e entra correndo na casa simples de agricultor. Com os olhos molhados, Josefa aponta pela janela. O doutor avança ao vidro e contempla a cena inverossímil. Um velho de 68 anos, roupas pesadas de chuva, braço esticado ao céu apontando uma vara qual Dom Quixote, andando em meio ao pasto a cerca de 50 metros de distância.
-- É sempre assim?
-- Desde aquela conversa. O que, por Deus, o senhor disse a ele, doutor?
Ele pesou se havia algum tom de censura na pergunta. Concluiu que não, só desespero.
-- Nada -- mentiu.
-- O senhor vai falar com ele?
-- Assim que a tempestade passar -- que eu não sou louco, pensou.
A tempestade amainou em cerca de cinco minutos, a massa deslocando-se para noroeste. Antônio já havia baixado a vara e retornava para casa com ar vencido. O médico achou melhor conversar com o homem longe da presença de Josefa.
-- Vou lá -- falou e saiu correndo, antes que ela oferecesse os ouvidos do bule de café.
Logo alcançava Antônio que parou para recebê-lo com ar surpreso. A chuva agora era fina garoa.
-- O que faz aqui, doutor?
-- Eu é que pergunto. O que está fazendo, homem?
-- O que o senhor vê: caçando um raio.
-- Você vai morrer!
Ele sorriu. Seu olhar ganhou um brilho alucinado:
-- Sei. Fulguração.
-- Quê?
-- Foi o senhor que me disse. A causa da morte será fulguração.
-- Não estou entendendo.
-- Quero lá no meu atestado de óbito. Causa da morte: fulguração.
-- Continuo não entendendo. Prá que isso, Antônio?
-- O senhor sabe há quantos anos sou lavrador?
-- Não. Imagino que mais de quarenta.
-- Mais de cinquenta, doutor. Desde menino.
Antes que o médico atalhasse qualquer coisa, desembuchou de vez, as palavras escapando como torrente que rompe açude mal feito.
-- Eu queria ser escritor, o senhor sabia?
-- Não -- o médico não fazia ideia.
-- Quando menino, no ginásio, o professor de português elogiou uns versos meus…
E ficou com aquela reminiscência muda, os versos rondando a memória…
Dos derradeiros raios do sol o brilho
Capturado pelo pendão de milho…
O médico estava se sentido desconfortável, sem entender o que se passava na cabeça do velho lavrador. Uma insidiosa vozinha lhe ciciava no ouvido: culpado, culpado…
-- Por anos escrevi poemas, contos, até um romance escrevi. Mandei originais para dezenas de editoras e nada.
Pensava que devia ser persistente, perseguir meus sonhos, como sempre ensinam os vencedores na televisão. Mas nunca se interessaram por meus escritos.
-- As editoras… -- como ajudo este homem? -- … só publicam gente famosa. Preocupam-se mais com o lucro certo do que com a qualidade da obra.
-- Não é isso, doutor.
-- Não?
-- Não. Eu sou ruim.
O médico não podia negar a frase categórica. Nunca lera um escrito de Antônio, sequer se interessava muito por literatura.
-- Mas o que isso tem a ver com levar um raio na cabeça?
-- Veja… sempre quis brilhar nas letras. Ao menos no meu atestado de óbito terei fulgurado.
-- Ah…
Para o doutor a explicação era absurda. O homem estava claramente deprimido e precisava tratamento. Resolveu seguir outro caminho.
-- Pense no que você realizou, homem.
-- E o que foi que eu realizei?
-- Suas terras… sua família…
-- Estas terras, doutor, herdei de meu pai. Não há mérito nisso. É terra pouca, vinte hectares. Com este pedacinho de chão, perdido no Brasil, a única lavoura que me dá algum sustento é o fumo. Há quase trinta e cinco anos planto fumo… planto, capino, colho, puxo a zorra, daí separo as folhas, seleciono, depois dias e noites e madrugadas assando as folhas, mantendo o forno da estufa na temperatura certa… vidinha besta.
-- Então. É um belo trabalho.
-- É como sobrevivo. A companhia vem e dá o valor que entende aos meus fardos e eu vou vivendo. Produzo pra companhia me explorar e vender vício.
O médico viu que o caminho não era bom.
-- E os filhos? Você criou quatro, não foi?
-- Foi.
-- Então...
-- Acho que são boas pessoas, não sei.
-- Claro que são.
-- O senhor os conhece?
-- Não -- admitiu.
-- Nem poderia. Já faz cinco anos que nenhum vem nos ver. A Aninha foi a última, no Natal de 2014. Eu não ligo, mas isso parte o coração da Josefa.
-- Sua esposa -- agarrou-se ao último argumento -- vai sofrer se você morrer.
-- Já pensei nisso. Temos a aposentadoria. Fiz um seguro de vida pra ela. Não vai passar necessidade.
-- Mas vai ficar sozinha.
-- Isso vai acontecer, mais cedo, mais tarde. Não vou durar pra sempre.
Uma ideia salvadora ocorreu ao médico, assim, do nada.
-- Mas se você morrer como está tentando, Antônio, o seguro não vai pagar nada.
-- Por quê?
-- Porque você estará deliberadamente causando sua morte. E suicídio não paga seguro.
Antônio estacou. Segurou o braço do médico e falou sério:
-- E como vão saber? O senhor vai falar alguma coisa?
-- Não -- culpado, culpado -- claro que não.
-- Então é isso.
A conversa encerrou por aí. O médico despediu-se do casal, recusando o café oferecido por Josefa. Mas antes de partir, já dentro do carro, Josefa chegou à janela do motorista.
-- E então, doutor?
Ele procurou por Antônio. Estava desaparecido dentro do rancho.
-- Vai passar. Mas se conseguir fazê-lo tomar o remédio -- escreveu rapidamente a receita de um antidepressivo -- pode ajudar.
-- Obrigado, doutor.
Acionou o motor e antes de partir ainda disse:
-- Olhe, mesmo tentando, é difícil ele conseguir morrer por um raio. Fique tranquila. Ele não vai morrer.
Mas morreu. Menos de mês passou e Josefa o chamou. Antônio havia morrido, mas não de raio.
-- Ele estava no pasto, na tempestade, com aquela maldita vara de metal, como tinha feito várias vezes -- contou Josefa. Mas quando a chuva passou, ele não voltou pra casa. Ficou lá, olhando pro céu, chacoalhando a vara. Parecia muito bravo, gritando consigo mesmo. Uma doideira. De repente, tropeçou num toco e bateu a cabeça numa pedra. Isso. Não pude fazer nada.
O que Josefa não entendeu é que, em seus últimos momentos, Antônio imprecava contra Deus:
-- Quanto tempo? Quanto tempo, Senhor, pra atender meu pedido? Vou ter que ficar me molhando mês após mês, metal na mão, pra você mandar um raio certeiro?
E continuava:
-- O Brasil é o país das descargas elétricas. Todo dia o senhor leva um inocente em meio a um relâmpago. E o desgraçado nem quer, nem sabe por onde lhe chegou a morte. E eu que quero, nada? É errado… é injusto. Errado e injusto como a minha vida…
Finalmente, brandia a vara de metal ameaçadoramente contra os céus, cada vez mais próximo do toco e da pedra:
-- Passei a vida lhe pedindo uma chance com meus escritos! A vida inteira! E o Senhor atendeu? Não. Nunca. Nem um poeminha publicado num jornal qualquer… Agora, 68 anos, só quero morrer…
E morreu. Agora, cabia ao médico preencher o atestado de óbito. Pesaroso, escreveu no documento:
CID 10 - SO2 - Fratura do crânio e dos ossos da face.
Achou que aquilo não faria o gosto de Antônio. Imaginou acrescentar: tropeçou num toco e bateu a cabeça numa pedra, mas caiu com graça e estilo.
-- Isso é ridículo.
Então cogitou sinceramente em alterar o documento, preenchê-lo com o CID da fulguração. Mas sabia que estaria cometendo um crime, falsidade ideológica. E declarar morte por raio certamente chamaria a atenção.
-- Perdão, Antônio -- suspirou.
Meses depois, passava ao lado do pequeno cemitério. Um impulso inexplicável o levou a procurar a sepultura de Antônio. Com algum custo, acabou encontrando o lavrador em seu último leito. Era um túmulo simples, mas digno. Havia até uma lápide de granito, talvez financiada com o dinheiro do seguro. O médico julgava-se imune a sentimentalismos. Mas uma lágrima rolou, depois que a garganta apertou. Aparentemente, Josefa conhecia os sonhos do marido. Pois na pedra fria estava escrito:
ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA
22/04/1950 - 03/02/2019
Lavrador e poeta
Dos derradeiros raios do sol o brilho
Capturado pelo pendão de milho…
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