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Arthur de Lacerda Neto

O GENERAL CARNEIRO NÃO FOI ALVEJADO À TRAIÇÃO


O autor do disparo pertencia ao contingente maragato, não ao pica-pau; o tiro proveio de atacante da Lapa, não de resistentes ao sítio; de conseguinte, tal tiro não ocorreu à traição.


Arthur Virmond de Lacerda Neto

"A Morte do General Carneiro" - Quadro de Theodoro de Bonna


I – Proposição do tema.

II – O boato.

III - A possível origem do boato.

IV – A verdade.

V – Conclusão. Julgamento.


I - Proposição do tema.


No que diz respeito ao cerco da Lapa, há dois capítulos merecedores de elucidação: quem foi o autor do disparo que vitimou o coronel Gomes Carneiro e quantos dias durou ele: o primeiro importa como dado per se, a bem da verdade histórica, e à guisa de confirmação ou desmentido do boato circulante em alguns autores, consoante a quem Carneiro foi ou terá sido alvejado (aos 7 de fevereiro de 1894) por comandado seu, em vez de por tiro maragato; o segundo consiste em minudência histórica que em nada altera a narrativa dos factos, porém aproxima-nos da realidade ( publiquei recente artigo neste blog sobre o assunto ).


II - O boato.


Valério Hoerner Júnior aventa a possibilidade de haver Carneiro sido baleado por combatente sob suas ordens: ele teria sido traído por pica-pau; Milton Miró Vernalha deduz tal pretendido facto como certo, para o qual, aliás, não invoca prova nenhuma: Carneiro “foi” traído.


O tiro fatal precipitaria o término da resistência e o sofrimento a que se achavam submetidos os sitiados: perigo de morte constante, risco de degolamento pelos maragatos, fome, fedentina por putrefação de cadáveres, sujidade de sangue e lodo generalizadas, deserções em aumento.

A resistência perdurava graças à pertinácia do então coronel Carneiro, já sem esperanças de receberem-se os prometidos reforços e malgrado reiteradas tentativas de obter-se-lhe a capitulação. Diante do estreitamento do cerco, da carestia, da míngua de munição, do sofrimento que se prolongava, algum comandado da força pica-pau ter-se-ia lembrado de alvejar Carneiro e precipitar a capitulação da Lapa, porquanto ele se recusara a parlamentar e a anuir a proposta de rendição.


A multiplicação de deserções na força pica-pau da Lapa evidenciaria descrença na utilidade da resistência, temor de derrota e de represálias dos maragatos, consciência da inutilidade do perigo e do sofrimento, em fase em que minguavam munição de boca e de tiro; entre os desertores ou entre quantos aspiravam ao fim da resistência, a algum poderia passar pela ideia matar Gomes Carneiro.


Valério Hoerner Júnior chega a afirmar haver duas versões: a oficial e a oficiosa: segundo a primeira, a bala mortal “veio do inimigo”, porém consoante a segunda, “partiu de dentro da Lapa. De um paisano qualquer que não concordava com aquela resistência até o último homem! O último homem seria lapeano...”; acrescenta: “Não existem provas dessa versão, mas há lógica nela. Prova disso é que, morto Carneiro, a Lapa imediatamente capitulou.”

Páginas antes: “E o que aconteceu foi justamente o tiro meio esquisito — traiçoeiro ? — recebido pelo coronel Carneiro, prostrando-o inexoravelmente”; “De forma que a bala mortal no fígado do coronel — vinda dos maragatos ou de sua própria gente [...]”.

Em passo posterior:


“De repente, Carneiro foi ferido.


Balaço maragato ? A história oficial diz que sim. A oficiosa diz que não. Diz a oficiosa que tomou o tiro vindo de suas próprias fileiras.”

Acrescenta que em 1944, por ocasião das comemorações do cinquentenário da resistência, um lapeano identificou para David Carneiro e para o general Cordolino de Azevedo o autor do tiro e que ambos entenderam ignorar tal depoimento que, vero ou não, “viria a abalar as estruturas do congresso” e que a “História poderia tomar outro rumo”. Mais diz: tal fora-lhe narrado pelo próprio David Carneiro, que já deslembrava-se do nome do putativo autor do disparo e que, na impossibilidade de revelá-lo na ocasião, “acabara perdendo a anotação” respectiva.

Milton Miró Vernalha assere, peremptoriamente, haver Gomes Carneiro, sido traído: “Uma bala traiçoeira matou o Coronel Carneiro, só assim a Lapa caiu”. No final de seu livro: “Creio que ainda me resta uma dúvida, quanto a forma de como morreu o Coronel Gomes Carneiro, durante o cerco da Lapa.”


Entre interessados na Revolução Federalista, leigos, estudiosos, curiosos, pesquisadores (a exemplo da comunidade homônima da dita revolução, no Facebook) lucubra-se a hipótese de o tiro fatal haver sido traiçoeiro e não inimigo, desfechado por elemento da força pica-pau, do interior da Lapa durante a resistência ao cerco, ao invés de por maragato.


Na obra-prima que é Arcabuzes (romance da revolução federalista no Paraná), Noel Nascimento aproveita a atoarda em dois passos:


— Tem gente pronta pra acertar os comandantes e atirar pelas costas no coronel Carneiro.


O segundo: Correu insistentemente o boato de que o Coronel fora baleado pelos próprios sitiantes [sic: leia-se sitiados].


O Diário do Paraná, de 29 de abril de 1972 publicou matéria de Arnoldo Anater, intitulada Amália é a única testemunha viva do cerco, em que registrou depoimento de Amália dos Santos Correa, então de 114 anos de idade e segundo quem “Foi um soldado do próprio general [Carneiro] quem o matou”. Prossegue a publicação: “Teria sido José de Lima o soldado que matou o general. Logo em seguida foi denunciado pelo negro Felix. Lima foi enforcado [...]”

III - A possível origem do boato.


Duas notícias (dentre possivelmente outras) em folhas de época introduziram a convicção ou a suspeita de traição:


1ª) A Republica (publicado em Curitiba), de 12 de maio de 1894, em artigo encomiástico a Carneiro: “Um miserável traidor feriu de emboscada ao valente militar [...]” (sublinhei).


2ª) O Estado de Minas, de 10 de fevereiro de 1896, com o título General Carneiro: “Fez hontem dous annos que, na cidade da Lapa, cahiu victima da traição o glorioso soldado mineiro [...]” (sublinhei).


É de notar que David Carneiro, o mais importante historiador do cerco da Lapa e da Revolução Federalista no Paraná (sem parentesco com Gomes Carneiro) jamais referiu aleivosia no disparo em questão, sequer conjecturalmente, e opôs-se à assertiva de M. V. Vernalha, neste sentido, consoante pessoalmente escutei-o opugná-la, quando especialmente consultado a respeito, na década de 1980, por Luís Alberto Bordenoski.


No ataque do dia 7 de fevereiro de 1894 (em que se alvejou Gomes Carneiro), os federalistas haviam adentrado pelos quintais das casas, desguarnecidos e destituído de valas, muros, cercas, empedramentos demarcatórios, pelo que se lhes acedia livremente. Apenas 3 ou 4 ruas estavam entrincheiradas em suas extremidades: havia acesso pelas demais, viáveis, porém resguardadas pelos sitiados.


Naquele dia, os sitiantes adentraram pelo quintal da morada de Francisco de Paula Xavier Bueno, maragato que lhes propiciou acesso a ela; de uma janela de sua casa, cerca de trinta atiradores dispararam metralhadora e carabinas; ela situava-se no interior do perímetro cercado, aquém da trincheira: os pica-paus achavam-se de frente para a trincheira e de costas para a janela de onde provieram os tiros. Daí Carneiro haver sido baleado pelas costas e não de frente, como seria natural se o tiroteio ocorrera da trincheira para fora em vez de da casa para ela; o recebimento do tiro pelas costas terá originado a convicção de que resultou de traição: os inimigos atiram pela frente, porém os traidores, pelas costas.


A disposição recíproca dos inimigos naquele combate acha-se plenamente estabelecida pela historiografia e é importante nela atentar-se para entender-se a posição em que Carneiro foi atingido; se tal disposição fosse a que normalmente ocorre em batalhas, em que os beligerantes hostilizam-se de frente e não de costas, então seria aceitável imaginar-se traição. Não foi o caso, porém.



IV - A verdade.


Carneiro não foi alvejado à traição, mas por soldado maragato que combatera no bando pica-pau em Tijucas e que fora incorporado (com inúmeros de seus pares) às hostes de Aparício Saraiva por ocasião da capitulação daquela cidade (aos 19 de janeiro de 1894); a seguir, com elas sitiou a Lapa; ele conhecia Carneiro (como antigo pica-pau), reconheceu-o e nele atirou: é o que informam três fontes:


1ª) A Republica, de 25 de maio de 1894 (parcialmente ilegível):


“[...] ba[l]a traiçoeira não desejou [...] poupal-o. Atirou sob[r]e ele [um] soldado do exercito capitulado nas Tijucas. Esse soldado foi imediatamente promovido a [alfer]es pelos federalistas, porque [teve ?] a sorte de assassinar o coro- [nel] Carneiro...”


O adjetivo traiçoeira induz à ideia de traição. Não se é traído pelo inimigo, senão pelos próprios parciais; contudo a mesma notícia informa haver atirado soldado da força pica-pau que capitulara nas Tijucas; como se sabe, tal força passou-se (parcialmente, pelo menos) para o lado maragato e de entre os trânsfugas achava-se o atirador em questão (promovido a alferes por seu feito) que, ao disparar contra Carneiro, integrava os sitiantes. Logo, o tiro mortal proveio do elemento maragato: Carneiro não foi traído.


2ª) A Republica, de 25 de agosto de 1894, sob o título Pena de Talião:


“Recordam-se os nossos amigos daquelle dia memoravel em que o bravo general Carneiro, avançando para a trincheira afim de animar os seus soldados, uma bala traiçoeira o atirou por terra ?


Dizem que um máo soldado de linha, dos entregues nas Tijucas ao famigerado bandido que se chamou Gumercindo, achava-se no meio do combate, na vanguarda dos atacantes, quando surgio-lhe á pequena distancia de tiro á queima-roupa a figura legendaria do inolvidável chefe da Lapa.


Esse infeliz soldado era o unico que conhecia o seu antigo commandante.


E, como a alma diabolica dos “federalistas”, se tivesse entranhado já no seu espirito fraco e ignorante, o novo assassino, vencido pela ambição de glorias, vendo já sobre os canhões da sua blusa duas fitas amarelas de tenente do banditismo, levou a arma á cara, puchou o gatilho, e sorrio!


— O bravo general estava ferido mortalmente.

. . . . . . . . . . . . . .

Agora, o reverso da medalha : Gumercindo, sem dignidade, sem alma para respeitar os tratados de capitulação, mandára tocar a degola e muitas horas de saque.


O morticínio fôra medonho. O latrocinio fôra terrível.


Mas a vingança do gaúcho tigrino ainda não estava completa : — o resto dos prisioneiros foi obrigado a pegar em armas assassinas, preenchendo os claros abertos nas fileiras mercenarias pelas gloriosas forças republicanas, que leoninamente por 26 dias defenderam o seu posto.


No meio daquelles vencidos, ia talvez um que jurára vingar a morte do seu valente chefe.


Esperou pacientemente o momento da desforra. Por felicidade sua, ou porque o fizesse propositalmente, foi cair prisioneiro das forças de Pinheiro Machado, onde retomou dentro em breve a sua carabina de soldado da lei.


Gumercindo estava encurralado, como um chacal, nas paragens do Carovi. A fome obrigou-o a sair da toca e a tentar romper o cerco.


Determinou que a sua cavallaria castelhana carregasse impetuosamente sobre as forças do Governo.


Estas receberam com denodo o tremendo choque, e despejaram uma saraivada de balas contra a cavallaria negra, que teve de recuar a toda brida.


Gumercindo ordena outra carga, e pela vez primeira vêm em pessôa commandal-a ; o envolvimento produzido pelo “entrevero” é medonho. Ha a confusão do sangue, das armas, das idéas, das maldições.

É quando o prisioneiro da Lapa, destaca no meio do combate o bandido que endemoninhára a alma de um antigo soldado legal, para assassinar covardemente o general Carneiro.


Conhecia-o de perto, e de perto arremeçou-lhe duas balas que atiraram-no por terra.


Estava lavada a affronta, estava completa a vingança.


Pena de Talião, que jamais fôra tão eloquente e completa !


— Quem com ferro fére, com ferro deve ser ferido.”


Desta notícia extrai-se que: 1) havia um soldado de linha (do exército regular), dos entregues nas Tijucas, ou seja, dos que, pica-paus, haviam resistido ao cerco daquela cidade e haviam sido incorporados ao exército de Gumercindo por ocasião da rendição daquela cidade. 2) Durante o sítio da Lapa tal soldado achava-se na vanguarda dos atacantes (maragatos), quando lhe surgiu proximamente o coronel Carneiro. 3) Tal soldado era o único que conhecia “seu antigo comandante”: Carneiro já não seu comandante, o soldado já não comandado por Carneiro, já pertencente ao bando maragato. 4) Tal soldado alvejou Carneiro. 5) Após a rendição da Lapa, o resto dos prisioneiros, isto é, parte dos pica-paus que haviam capitulado (aos 11 de fevereiro de 1894), foram jungidos a incorporar-se ao bando maragato. 6) De entre eles, um conhecia o autor do disparo contra Carneiro. 7) O que conhecia o autor do disparo contra Carneiro matou-o com dois tiros.

Por outra: um soldado de linha, pica-pau, resistiu em Tijucas, após cuja capitulação foi integrado à força maragata e participou do sítio da Lapa; ele conhecia Carneiro, que reconheceu no ataque do dia 7 de fevereiro e contra quem disparou. Parte dos resistentes da Lapa foi, por sua vez, adicionado à força federalista; dentre eles um conhecia o matador de Carneiro e liquidou-o por sua vez. Sucintamente: um soldado pica-pau (de Tijucas) aderiu à revolução e como tal vitimou Carneiro; um combatente pica-pau (da Lapa), incorporado à hoste revolucionária (de bom grado ou mau grado seu), deu cabo do matador de Carneiro.

3º) Depoimento de Emílio Batista Gomes, veterano da resistência da Lapa: “Foi um soldado do 17º de Infantaria, incluído na tropa do Coronel Aparício Saraiva, que conhecia o coronel Carneiro por ter servido nas nossas forças, que, no dia 7 de fevereiro de 1.894, dia do grande combate em que foram feridos Dulcídio, Amintas e Carneiro, da janela de uma casa situada no beco que da rua das Tropas ia à rua da Boa Vista, nas proximidades da farmácia Westephalen (sic), de pontaria desfechou certeiro tiro no coronel Carneiro, e, em seguida, foi relatar esse feito aos seus chefes, os quais, duvidando, não lhe deram maior importância. Quando Laurentino Pinto, no dia 10 de fevereiro, foi combinar as condições da capitulação, verificou que o ex-soldado do 17º de Infantaria havia dito a verdade, pois Carneiro falecera em conseqüência do ferimento recebido no dia 7. Por esse ato aquele soldado foi promovido a alferes, na infantaria de Aparício, e com este seguiu na retirada, emigrando, com outras forças, após a morte de Gumercindo.”

Entenda-se: 1) um soldado do 17º de infantaria serviu nas forças pica-paus (em Tijucas). 2) Ele foi incorporado à tropa de Aparício Saraiva. 3) Ele conhecia Carneiro por haver servido, anteriormente, no contingente pica-pau. 4) Ele produziu o ferimento fatal em Carneiro. 4) Em razão deste sucesso, foi promovido a alferes.


O autor do disparo pertencia ao contingente maragato, não ao pica-pau; o tiro proveio de atacante da Lapa, não de resistentes ao sítio; de conseguinte, tal tiro não ocorreu à traição.

Tal testemunho foi remetido por seu autor J. Sabóia Cortes, por pedido da comissão organizadora das comemorações oficiais do cerco da Lapa; ele data de 13 de fevereiro de 1944. A informação acima realçada certamente circulava e seria do conhecimento de outrem, dentre quem Manuel Leocádio Machado, autor de Sangue e Bravura, romance histórico dos tempos da Revolução Federalista e da invasão maragata no Paraná, que imputa ao então coronel Carneiro este dito, nas vascas da morte: “Fui alvejado por algum desertor que me conhece.”: a declaração é fictícia, porém parcialmente vero seu teor (foi alvejado por trânsfuga que o conhecia), pista de que Manuel Leocádio Machado conhecia a informação respectiva. Octávio Secundino Júnior, que reproduz tal passo, glosa-o: “Essa esquisita referência, não encontramos em mais nenhuma fonte.” , sinal, por sua vez, de que já não lhe chegara a tradição documentada por Emílio Batista Gomes e conhecida de Manuel Leocádio Machado, bem como certamente de terceiros.


O depoimento de Amália dos Santos Correa (“Foi um soldado do próprio general [Carneiro] quem o matou.”), mantém a atoarda e contém imprecisão: não foi soldado do próprio Carneiro quem o matou, mas um seu já ex-soldado, trânsfuga e maragato na altura em que o fez; a distinção entre soldado e ex-soldado é decisiva: a primeira condição importa em traição, porém não a segunda. Quanto à sua identificação nominal (José de Lima), será virtualmente impossível confirmá-la ou desmenti-la; sua morte por enforcamento acha-se desmentida por A Republica, de 28 de agosto de 1894.



V - Conclusão. Julgamento.


O então coronel Gomes Carneiro foi alvejado por soldado inimigo, não por comandado seu; o tiro que o vitimou não ocorreu traiçoeiramente; ele proveio do recinto cercado, porém de combatente sitiante; Carneiro não foi morto por pica-pau traidor e sim por maragato inimigo.


Assim se elucida ponto da história do cerco da Lapa até aqui objeto de rumores. De resto, os autores Valério Hoerner Júnior, Milton Miró Vernalha e todos quantos especulam sobre a autoria do disparo facilmente haver-se-iam elucidado nesse capítulo se houvessem consultado o Boletim do Instituto Histórico Paranaense, em seu volume XI, disponível tanto no próprio Instituto quanto na Biblioteca Pública do Paraná.

Se o autor do baleamento em causa fora pica-pau, julgar-se-lhe-ia a aleivosia como ato indigno e homicida; os infensos à pertinácia de Carneiro em resistir explorariam tal circunstância para verberar-lha: invocariam a traição de que teria sido vítima como outra suposta prova da exasperação em que se achavam os lapeanos; tal seria a linha argumentadora de maragatos ou de indiferentes. Em contrapartida, a verdade factual é a de que Gomes Carneiro ordenou a resistência da Lapa a todo transe e a todo transe manteve-a enquanto viveu; capitulou-se por exaustão de víveres e de munição, quando já seria inexeqüível a prossecução da resistência.


Vivera Carneiro, esgotados os meios militares e de alimentação, e a praça teria sido invadida pelos atacantes, com pelejas a arma branca, espadas e baionetas, e fuzilaria mortífera para os sitiados, que asinha teriam sido subjugados; não se haveria entabulado a capitulação nos termos em que ela se operou; muitos dos vencidos teriam sido degolados, pelo menos (em tese) os oficiais, a começar pelo próprio Carneiro (objeto da sanha psicopata de Cesário Saraiva, a quem, segundo o próprio, Carneiro teria sido dado em vida por Gumercindo). Neste sentido (hipotético), a rendição evitou matança previsível. Ou não teria sido assim: malgrado a obstinação de Carneiro no prosseguimento da resistência, cedera à força das circunstâncias e às previsíveis ponderações de seu estado-maior, e teria capitulado em dias próximos de 10 de janeiro de 1894.


O contexto era de missão militar, de que Gomes Carneiro fora encarregado e que levou a cabo, denodadamente e a despeito das pressões exógenas para que se rendesse. Ao elegê-lo para a chefia parcial das forças no Paraná e incumbi-lo de impedir o avanço dos revolucionários, Floriano Peixoto escolheu o homem certo para o lugar decisivo: dentre inúmeros outros oficiais disponíveis no Exército brasileiro, lembrou-se precisamente de Gomes Carneiro: é porque o conhecia e nele confiava, certo de suas qualidades militares, de seu senso de dever e de compromisso. Floriano bem escolheu; Carneiro atuou à altura da confiança que lhe mereceu, ao cumprir sua comissão tanto quanto em si coube, até ao limite de sua própria existência, no que representou esforço denodado, pertinaz, diuturno da resistência que merecidamente se adjetivou de epopeia.


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