O TEMPO E O ATEMPORAL
- Manuel Rosa de Almeida
- há 3 dias
- 2 min de leitura
Vai me lançar na lixeira?

Imagem de Gemini IA.
Fazia apenas dois dias que ela havia partido. Olhei para o contato dela no whatsapp e pensei em apagar. Não haveria mais mensagens, pensei pragmático. Ela me olhou da fotografia do perfil como quem diz: vai me lançar na lixeira? Simplesmente não consegui. Senti como se a estivesse eliminando da minha vida de uma forma inclemente, truculenta. O contato ficaria lá por algum tempo.
Aqui na Terra, este planeta marcado pela transitoriedade e que submete tudo que está vivo à farsa do tempo, tudo passa. Pequenos insetos, humanos, sequóias, cordilheiras. Tudo passa. O tempo não existe. Um inseto vive alguns dias. Uma sequóia centenas de anos. O planeta vaga no universo há quatro bilhões de anos. Não faz diferença na perspectiva da transitoriedade. Ao final, tudo passa.
O ser humano, contudo, por alguma centelha misteriosa que nele se esconde, insuspeita, ignorada, pode driblar a transitoriedade. Há duas formas de enganar o tempo e uma forma de vencê-lo. Podemos enganar o tempo e subsistir à ampulheta por meio de nossas obras ou pelas lembranças que ficam na memória de alguém. Nossas obras remanescem à carne, sejam físicas ou não. Podemos legar coisas à posteridade e assim, de certa maneira, seguir vivendo. Um livro, um monumento, um prédio, a educação que demos aos filhos, um pensamento que legamos ou o exemplo de várias atitudes ao longo da vida. São nossas obras. Elas nos ultrapassam.
Da mesma forma, seguimos vivendo enquanto ficamos na memória de alguém. Ele gostava disso, ela sempre contava esta história, ele me ensinou isso... Enquanto alguém lembrar de nós, seguimos vivos no outro. Enquanto houver lembrança, a pessoa lembrada ainda existe. E dribla o tempo. Mas, assim como as obras, as lembranças são formas de enganar o tempo, tão somente.
Para superar o tempo, somente o atemporal. A centelha misteriosa oculta em nós, desconhece o tempo. O espírito está em outro plano, imune ao físico, indiferente ao espaço/tempo. Conhece-os tão somente como jogadores entram em contato com a realidade de um jogo de tabuleiro. Embora não lhe seja indiferente, o que ocorre no tabuleiro não pode ferir o jogador, tampouco envelhecê-lo. Há pessoas que sequer percebem o jogo em curso. Imaginam-se vivendo a realidade do tabuleiro e, assim iludidos, sofrem o espaço/tempo. Contudo, mesmo quem desconhece o espírito, mesmo quem o nega, transcenderá a morte e seguirá vivendo.
Era uma tia que vivia em Porto Alegre, a 800 quilômetros de distância. Ela não tinha filhos, então os sobrinhos velavam por ela, mesmo à distância. Eu contava entre estes sobrinhos. Apoio financeiro para mantê-la numa casa de repouso, visitas eventuais, telefonemas e mensagens de whatsapp. Muitas vezes recebi mensagens dela quase ininteligíveis. Outras procurei ampará-la em longas conversas por celular. Agora a foto dela no perfil era a derradeira imagem que eu carregava dela, como que dizendo: enquanto você lembrar de mim, sigo vivendo.
Ainda não posso apagar o seu contato.
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