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Foto do escritorHatsuo Fukuda

A MALDIÇÃO DE MALINCHE


Cláudia Sheinbaum vai ser a nova presidente do México. Seu desafio: afrontar a maldição de Malinche.


Imagem de Veja.


A eleição de Cláudia Sheinbaum, uma mulher presidente – a primeira -, no México, foi saudada no mundo todo. No nosso cantinho estreito também comemoramos. Como todo macho preconceituoso, gostamos de ver mulheres bonitas, inteligentes e poderosas. Pois é, rapazes. Ela é bonita, inteligente e superpoderosa. Tudo aquilo que vocês sonharam nos seus sonhos de adolescente.


Como o Publisher nos proíbe falar de coisas sérias, como os destinos do México, da América Latina e do resto da humanidade, não direi uma palavra sobre as preocupações do mercado e de Wall Street sobre o futuro do país. Como vocês devem imaginar, o mercado está preocupadíssimo. The Economist já verbalizou as preocupações dos investidores. O New York Times idem. Etc, etc, etc.


Na realidade, se a história nos ensina alguma coisa, tudo isso é bobagem. Lá como cá, business as usual.


Um dos desafios da nova presidente, por ser mulher, é a Maldição de Malinche (Marina, para os espanhóis), a onipresente sombra que pesa sobre o México e a América Latina. Malinche era uma escrava que foi dada a Hernan Cortes quando de sua chegada ao México. Fluente nas línguas nativas, inteligente e vivaz, logo ganhou a confiança do conquistador, primeiro atuando como intérprete, e depois, como sua amante (teve um filho com ele, Martin, o primeiro filho de um espanhol com uma nativa). Malinche esteve presente em toda a Conquista, tendo atuado como intérprete junto ao imperador Montezuma na Cidade do México. Sem ela, a jornada teria sido muito mais difícil. Em uma das vertentes da tradição latino-americana é considerada uma traidora de seu povo. A cantora e compositora mexicana Amparo Ochoa, com uma voz forte e emocionada, canta sobre a maldição:



“Oh, maldicion de Malinche/Enfermedad del presente/Cuando dejarás mi tierra?/Cuando harás libre a mi gente?”



Para Ochoa, a chegada dos espanhóis significou a perda do paraíso perdido: a grandeza do passado, nossa fé, nossa cultura, nosso pão, nosso dinheiro. Com os conquistadores, ontem espanhóis, hoje americanos, trocamos ouro por contas de vidro, nossas riquezas por espelhos brilhantes. Nós somos humildes perante os estrangeiros, mas soberbos com nossos irmãos do povo, nossos índios. Esta a maldição de Malinche. Trezentos anos de submissão aos conquistadores.


Bem, o Mexico tem uma longa história com os irmãos do Norte. Metade de seu território foi anexado pelos vizinhos mais fortes. Soldados americanos entraram em seu território, atrás de Pancho Villa (uma tropa de 10 mil homens, comandado pelo General Pershing). Não à toa eles costumam dizer: “Pobre México, tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos”.


Difícil não se emocionar ouvindo Amparo Ochoa. Ela não é uma simples cantora ou compositora. É uma guerreira. Sua versão de Adelita – que nós conhecemos como uma canção romântica na voz aveludada de Nat King Cole – é um cântico de guerra. Homens armados prontos para morrer a cantavam antes e depois das batalhas da Revolução Mexicana. Ochoa nos entrega seus sonhos quando canta, no Corrido de Pancho Villa: “Qué falta que hace que reviva Pancho Villa”.



Imagem de Aventuras na História.


Mas, emoções à parte, lembramos que Malinche, entre os indígenas, era uma escrava, vendida três vezes até chegar a Cortes. Permanecendo entre os seus, ela poderia vir a ter o destino de muitas escravas, ser sacrificada a um dos inúmeros deuses indígenas e servir de almoço para a família (eles eram canibais). Com os espanhóis, ela recebeu um lugar de respeito (Doña Marina), sendo reverenciada por todos, nativos e conquistadores, até o final da vida. Para Malinche, e para todas as tribos que viviam oprimidas pelos astecas, a vinda dos espanhóis foi uma libertação. De quebra não seriam servidos como prato principal nos banquetes.


A nova presidente tem uma história ligada a esta tradição de luta mexicana. Estudou na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), onde foi uma ativa militante estudantil. Nestes tempos, chegou a morar em comunidades indígenas para projetar fogões a lenha mais eficientes. Seus pais eram professores e militantes políticos de esquerda, fazendo parte da antiga tradição de judeus de esquerda, que começou com Karl Marx. Segundo ela, na sua casa discutia-se política no café da manhã, no almoço e no jantar. Fez um mestrado em Berkeley, e depois um doutorado na UNAM. Ela, como Malinche, faz parte de uma elite econômica e intelectual do país.


Vai ser difícil. Boa sorte, Cláudia.



Cláudia Sheinbaum é uma protegida de Andres Manuel Lopez Obrador, codinome AMLO, o atual presidente. Em seu período, o México se transformou no maior exportador para os Estados Unidos, ultrapassando a China, graças à política americana de substituição de produtos chineses. As fábricas estão se transferindo para o Mexico, atraídas pela proximidade com os Estados Unidos (nearshoring, como dizem os economistas). Por alguns parâmetros, o PIB mexicano já ultrapassou o brasileiro. AMLO se diz de esquerda, mas não é burro. Em economia ele é um conservador. Não se espera outra coisa da nova presidente. Malinche é um enigma a ser decifrado. Ou um labirinto sem saída.

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