A amizade contém benevolência para com o amigo, não contém necessariamente carinho.
Arthur Virmond de Lacerda Neto
Imagem de Sasin Tipchai por Pixabay
O fundamento das amizades é a afinidade, não o afeto, nelas secundário, até terciário: há-as duradouras, sinceras, e inafetuosas, e as há afetuosas da parte de um amigo, sem sê-lo da parte do outro; também pode havê-las reciprocamente afetuosas. Se unilateralmente afetuosa, o único significado do afeto está no (passe a expressão) enriquecimento interior do amigo afetuoso, a única diferença que lhe faz consiste em que sua vida sentimental (em acepção latitudinária) terá mais conteúdo e poderá determinar-lhe atitudes afetuosas. Se reciprocamente afetuosa, tais significado e efeito serão comuns a ambos amigos.
Amizade é tipo de relação humana de abertura para o outro, de aceitação do outro como individualidade, de reciprocidade e confidência; ela contém benevolência para com o amigo, não contém necessariamente carinho. As amizades carinhosas são raras e atípicas: poderão ser veramente fraternais, são as chamadas “amizades particulares” (em alusão ao livro “As amizades particulares”, de R. Peyrefitte) ou amizades amorosas, com natureza homossexual ou sem ela, e no segundo caso, com natureza apenas homofílica. As amizades carinhosas ante acentuada desigualdade etária podem ser paternais, isto é, compreender algum sentimento, da parte do mais velho, que teria um pai quanto a seu filho, de querer-lhe bem e até protegê-lo; reciprocamente, da parte do mais novo, compreenderá algum sentimento filial, análogo ao do filho para com seu genitor.
É da experiência humana a da raridade de carinho entre amigos, conquanto haja (mormente entre jovens) camaradagem, entrosamento, intimidade em variegados graus; daí alguns vocativos típicos: “parça” (parceiro); “bróder”, “mermão” (dos cariocas).
Talvez haja algum componente de bissexualidade ou de homossexualidade (dissimulada ou não) na “broderagem” e na figura dos “góis” (por má analogia com “gays”), fenômeno anterior a tais neologismos e que consiste na atividade sexual de homens entre si, em forma de experimentação mútua dos corpos, mercê de masturbação recíproca em duplas ou em magotes, e outros tocamentos, amiúde na adolescência e na juventude, fenômeno que potencialmente acompanha a amizade ou a camaradagem de jovens, em que a liberdade de uns com os outros, a curiosidade, o desejo, ocasionam tais manifestações.
Nas sociedades de gênese cristã as demonstrações afetuosas entre homens são confundidas com expressões de homossexualidade e até mui recentemente eram censuradas, à conta da homofobia e da heteronormatividade; pouco se cultiva a afetividade e até se sustenta a ideia, tosca, de que o homem realmente masculino não exprime seus sentimentos, não chora, é “forte”; varões há ou havia segundo quem “homem não chora”, “homem não abraça homem”, “homem não acha homem bonito”, ditames preconceituosos, antiafetivos os dois primos e antinatural o terceiro. Somos deformados neste sentido desde crianças, quando devêramos ser educados sentimentalmente, isto é, com valorização dos bons sentimentos, com estímulo da simpatia, da empatia, da cordialidade (em acepção etimológica), o que abarca a expressão de tais sentimentos. Em 1981, ouvi os preceitos de que “homem não acha homem bonito” e de que “homem não abraça homem”; vá lá que os ouvi de varão preconceituoso, de formação curitibana, prontamente obtemperados por moça de formação paulistana, em que a origem e a idade de cada qual terá concorrido para a diversidade de juízos.
Interessante manifestação afetuosa dá-se nas partidas de ludopédio (futebol), ao marcar-se tento (gol): reparai nos abraços que os jogadores dão-lhe ao autor, no toque dos corpos, nas mãos no rosto, no pesçoco: quer-se proximidade física, toque, envolvimento de corpos, o que sucede em público, em homens, perante homens, à guisa de comemoração, de alegria — também de afetividade ? Nestas circunstâncias, os machos abraçam-se, tocam-se, apertam-se, fazem, intensamente, o que fora delas não o fariam: são circunstâncias de exceção, ainda que explicar melhor.
A mímica afetuosa “começa pela tendência de aproximação; termina pelo contacto dos corpos ou de algumas partes do corpo.
É na escolha instintiva das partes que se põem em contacto que se revelam as diversas formas de afeição [...]”[1]. “A expressão dos sentimentos pessoais é concêntrica, centrípeta; a das afeições benevolentes é excêntrica e centrífuga.”[2]: a mímica dos sentimentos bondosos e afetuosos vai do sujeito para o outro. Na mímica do amor e da benevolência, tendemos a aproximarmo-nos do objeto amado: ela “modela-se sempre consoante a este princípio fundamental: aproximar-se do que se ama.”[3] “No momento dessa aproximação, manifestamos sempre sentimento de prazer, que tem vários significados diferentes; porém todas podem ser referidas a esse ponto principal: mostrar a alegria de estar reunido ao que se ama e o desejo de reciprocidade.”[4]
“A afeição é força essencialmente centrífuga: ela tende a transvasar, por assim dizer, uma parte de nós próprios, na pessoa amada. Nosso eu sai quase por inteiro do próprio sujeito para entrar em outrem e incorporar-se a outra natureza humana.”[5]
Na sociedade brasileira, as manifestações afetuosas decorrem notadamente em família, se e quando ocorrem: entre pais e filhos, avôs e netos, cônjuges, irmãos; também há, contudo, pais indiferentes a seus filhos, irmãos odientos, parentes indiferentes, cônjuges sem amor.
“[...] somos educados como se não tivéssemos senão inteligência; a cultura do coração e do caráter fica inteiramente abandonada [...]. Temos até vergonha de parecer ternos e sensíveis”, declarava Miguel Lemos a Raimundo Teixeira Mendes, em 1879.
Em algumas regiões do Brasil, soem rapazes e moças cumprimentarem-se com ósculo e amplexo; no meio homo juvenil curitibano[6], entre amigos e nas baladas, há uma década soía-se e de presente sói-se abraçar-se no cumprimento e na despedida, costume que, possivelmente, repete-se em meios homo de alhures, no Brasil, e que resultará de três motivos: 1) simpatia recíproca de seus integrantes, máxime nas décadas de homofobia mais intensa, por saberem-se vítimas (em variegados graus) da hostilidade ambiente (em família e fora dela), isto é, porque todos passassem por problemas análogos, sentiam um pelos outros empatia e solidariedade; 2) ausência do preconceito de que homem não abraça homem; 3) imitação.
Segundo consta, os povos latinos são afetuosos (brasileiros, portugueses, espanhóis, italianos, franceses; estou em crer que também argentinos e mais povos da América do Sul), contrariamente aos britânicos, retraídos.
Augusto Comte (criador do Positivismo e da Sociologia) discriminou 18 funções afetivas, intelectuais e práticas no ser humano, o que nomeou alma humana ou quadro cerebral, em que o substantivo alma tem nenhuma acepção sobrenatural (teológica), mas sentido imanente, natural, e serve para descrever a natureza humana. As funções afetivas abarcam os sentimentos egoístas (voltados ao próprio indivíduo) e os altruístas ou instintos sociais (voltados a outrem); estes são o apego, a veneração e a bondade, inclinações de generosidade dicadas, respectivamente, a quem nos seja igual, a quem nos seja superior, a quem nos seja inferior, tomados esses adjetivos quanto à idade, à condição social, intelectual, profissional — em suma, relativamente a critérios desigualadores. O sentimento de simpatia universal, Comte nomeou humanidade e adotou como critério de comportamento ideal do homem afetuoso, inspirado tanto quanto possível pela simpatia para com pessoas, fauna, flora, para com a própria Terra, sentido em que é valioso educar o infante, o adolescente, o adulto: realçar a beleza moral dos bons sentimentos e seu mérito nas relações humanas, encarecer as manifestações de simpatia humana e desaprovar as de antipatia, já no trato pessoal, já nos costumes, já na política (em sentido latitudinário).
São expressões, por exemplo:
a) de simpatia no trato pessoal: saudar conhecidos ao invés de ignorá-los (lição para curitibanos), ser gentil em lugar de rude; ser atencioso; ser caloroso (como os brasileiros saber ser), que não seco (como os curitibanos sóem ser); empregarmos vocativos como “meu amigo”, “prezado colega”; sermos amistosos com os amigos e também com estranhos.
b) De simpatia nos costumes: cultivarem-se relações de amizade, de família, de vizinhança, de coleguismo; oferecerem-se flores ou prendas por ocasião dos anos de outrem, aporem-se flores nas tumbas de nossos mortos queridos, na conversação termos tato para não melindrarmos o interlocutor, usarem-se fórmulas de polidez (por favor, por obséquio, por graça, por mercê; desculpe-me; obrigado, grato, bem haja; com licença), ensinar-se empatia às crianças.
c) De simpatia na política: espírito público, zelo do bem comum, esforço pelo melhoramento da condição de vida do público em geral (incorporação do proletariado à sociedade, na fórmula positivista).
Nas classes média média, média alta, e alta, a simpatia no trato pessoal equivale às boas maneiras: gente polida pratica-a, quer espontaneamente, quer por educação; gente rude é-o por carência de boas maneiras, isto é, de consideração para com o próximo: a falta de polidez sempre se dá na relação com outrem, a quem o rude trata com escassa amabilidade ou sem ela.
Empenhado na educação (em sentido próprio de formação de valores, orientação de comportamentos, dotação de conteúdo intelectual) Comte instituiu a Biblioteca Positivista, acervo de livros cuja leitura recomendava, de história, filosofia, literatura e ciência, em que inseriu Paulo e Virgínia (de Bernardino de S. Pierre, de 1787) e O vigário de Wakefield (de Olivério Goldsmith, de 1761): aquele descreve a simpatia mútua de seus heróis; o segundo expõe a bondade de seu protagonista e os hábitos simpáticos de sua família; ambos dão o exemplo de humanidade.
O leitor interessado no tema da amizade lerá, proveitosamente:
1- Psicologia da amizade, de Mário Gonçalves Viana.
2- A Amizade, de Francesco Alberoni.
3- Educar para a amizade, de Gerardo Castillo.
4- Da Amizade, de Anne Vincent-Buffault.
5- Memórias de duas amizades, de Arthur Virmond de Lacerda Neto.
6- Sentimentos e costumes, de André Maurois.
A continuação deste texto será publicada em breve.
[1] P. Mantegazza, A fisionomia e os sentimentos. Paris, 1897, p. 119. Traduzi.
[2] P. Mantegazza, A fisionomia e os sentimentos. Paris, 1897, p. 111. Traduzi.
[3] P. Mantegazza, A fisionomia e os sentimentos. Paris, 1897, p. 115. Traduzi.
[4] P. Mantegazza, A fisionomia e os sentimentos. Paris, 1897, p. 115. Traduzi.
[5] P. Mantegazza, A fisionomia e os sentimentos. Paris, 1897, p. 116. Traduzi.
[6] É traço assinalável no desbrasil que é Curitiba, em que as externizações afetuosas são mui contidas e até ausentes, característica (dentre outras) do curitibóca, que não serve como exemplo recomendável de interação nem de afetividade humanas, e sim como seus contraexemplos, como tipo do humano taciturno, carente de simpatia e de calor humano, o que é sobejamente conhecido e facilmente reconhecido pelos forasteiros em Curitiba.
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