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Foto do escritorManuel Rosa de Almeida

COMPATIBILIZANDO ONISCIÊNCIA E LIVRE ARBÍTRIO

Republicação agora acrescida da contribuição do pensamento de Santo Anselmo.


Imagem de anncapictures por Pixabay

Quando estamos envolvidos no polêmico confronto entre Determinismo e Livre Arbítrio – se advogamos a causa da liberdade que cada indivíduo possui de decidir os passos que deseja dar – somos sempre confrontados com uma série de argumentos. Tais argumentos são apresentados como inquestionáveis, pérolas da razão que deveriam nos reduzir ao silêncio constrangido.


Um destes argumentos – dito teológico – afirma que, se reconhecemos em Deus um ser onisciente, então necessariamente devemos negar o Livre Arbítrio. Afinal, ou Deus sabe o que vai nos acontecer ou não é onisciente. E, se sabe tudo que nos vai acontecer, por óbvio, não temos qualquer escolha; porque, se tivéssemos, isto é, se houvesse, digamos, a possibilidade de surprendermos a Deus com alguma de nossas escolhas, Ele deixaria de ser onisciente.


É claro, poderíamos sempre responder que somos ateus, que pensamos a criação como o resultado do encadeamento de fenômenos naturais. Poderíamos também dizer que, embora acreditemos em Deus, não o vemos como um ser onisciente. Defendendo qualquer destas posições – uma que penso ilógica e a outra absurda – a discussão não existe. Vale dizer que o argumento pressupõe confrontar alguém que crê em Deus e num Deus digno do nome, com seus atributos máximos: onipotência, onisciência e onipresença. É o meu caso.


Não há que negar certa engenhosidade neste argumento teológico, uma certeza quase geométrica irrefutável. Entretanto, no íntimo de nosso ser sabemos que o argumento é falso, que não somos meros marionetes do destino, que não vivemos ( se vida seria, neste caso ) como robôs programados meticulosa e irreversivelmente. A pessoa que realmente pensa assim deve ter uma vida bem angustiada ou absolutamente irresponsável – e estaria plenamente justificada. Sabendo e intuindo que o argumento é falso, passamos a considerá-lo como um paradoxo, um inteligente jogo de palavras a ser vencido. Tal como o paradoxo de Cantor é engenhoso, mas falso, este também é.


Como intuição nada prova, é preciso dizer mais. Poderíamos, neste ponto, acrescentar o pensamento de Santo Anselmo, expresso em seu Monológio, obra escrita no Século XI, em que ele desloca entidade suprema das limitações de tempo e espaço:


A Essência Suprema encontra-se em todo lugar e tempo, porque não está ausente de nada; e não se encontra em nenhum lugar, porque não possui nem lugar nem tempo e não admite, em si mesma, distinção de lugar e de tempo; nem ela está aqui ou ali, nem em parte alguma; nem no “então”, nem no “agora”, nem no “uma vez”.


Reforçados por esta reflexão que nos vem do passado, reflexão que julgamos válida, é preciso apontar uma realidade possível em que onisciência e livre arbítrio não sejam contraditórias; demonstrar que Deus tudo sabe e, ainda assim, somos senhores de nossos atos e responsáveis pelo nosso destino. É o que pensamos fazer a partir de agora, mas alertando, contudo, que quando nos referimos à realidade pensamos numa realidade meramente adstrita à condição do ser humano, algo que pode ser mera ilusão e que, absolutamente, não envolve o Ser Supremo.


Muitos já pensaram na imagem de Deus nos contemplando, à maneira como por vezes fazemos com formigas. Elas estão ali, alheias à nossa presença e observação, atarefadas com o ofício de viver: seguem o carreiro, cumprimentam-se, carregam folhas descomunais para seu tamanho, por vezes se perdem e fazem diversas voltas até retornar à linha. E sequer imaginam que algum ser superior está contemplando tudo que acontece. Sim, a imagem não é suficiente para afastar o paradoxo, aparentemente, mas pode ser útil mais adiante.


O problema da mente humana é que somente concebe o tempo linearmente. Viemos da pré-história, atravessamos os clássicos, a idade média, a idade moderna e atingimos contemporaneidade. O futuro é algo que nos aguarda, lá na frente. O ser humano só pensa no tempo nestes termos. É por isso que elabora linhas do tempo. Mas... e se não fosse assim? Se houvesse apenas o presente? Se todos os fatos verificados no universo e na curta história do ser humano estivessem acontecendo simultaneamente, neste exato instante? O big-bang, um meteoro lançando na terra as primeiras moléculas de água, o primeiro ser que abandona seu ambiente aquático, Heitor morrendo em frente aos portões de Troia, César recebendo a décima punhalada, D. Pedro I dando o grito do Ipiranga e a bomba H explodindo em Hiroshima. Agora. Neste momento.


Esta maneira de ver o tempo subverte totalmente nossas noções. O que concebemos linear é uma imensa rede de acontecimentos interagindo e mudando a todo instante. Se a ideia é absurda demais para você, a ponto de sequer pretender cogitar nisso, lembre que Einstein já demoliu nossas certezas acerca do tempo, mostrou que é relativo, que se dobra... E, nesta maneira a onisciência não interfere no Livre Arbítrio. Deus tudo sabe, porque a tudo observa, mas tudo está acontecendo neste momento. O paradoxo é eliminado. Só há o tempo – passado, presente e futuro são conceitos humanos ligados à ideia de linearidade. Santo Agostinho - em Confissões - já expressava esta convicção: só o presente existe.


Se sua reação é de pura descrença – afastar a ideia como absurda – pense que nesta polêmica partimos de um conceito igualmente difícil de aceitar: onisciência. Partimos da premissa, para mim evidente, de que Deus é onisciente e onipotente. E agora, podemos aceitar, que é também onipresente no espaço e tempo. Onipresente!

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