Houve uma época em que presidentes da República confraternizavam com professores. E falavam português.

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1954 foi um ano memorável para a Universidade do Paraná. O ano letivo se encerrou com uma sessão solene da Assembléia Universitária (a congregação de professores). O Presidente da República, Café Filho, e os ministros da Saúde e Viação e Obras Públicas estiveram presentes. Foi entregue o título Benemérito da Universidade do Paraná ao Governador Bento. A sessão foi presidida pelo Reitor Flávio Suplicy de Lacerda.
Enfim, um convescote dos mais ilustres próceres udenistas, em um país conflagrado e dividido entre getulistas e lacerdistas, petebistas e udenistas, a famosa esquerda versus direita que desde sempre assola o país. Getúlio havia morrido quatro meses antes, e com sua morte, a ofensiva lacerdista tinha sido derrotada. Curitiba, sempre conservadora, recebeu de braços abertos o presidente que sucedeu Getúlio, e que, no ano seguinte, estaria no turbilhão dos golpes e contragolpes para impedir a posse do presidente eleito, Juscelino.
Mas, nesta ocasião, flores, homenagens e baile de gala – o presidente Café Filho veio para a inauguração do Palácio Iguaçu, que aconteceu no mesmo dia (19 de dezembro) – uma festa de arromba - o receberam na Reitoria.
Que tempos, aqueles! Um presidente da República se dava ao trabalho de comparecer a uma chatíssima sessão solene de prestação de contas de um reitor de universidade, e receber rapapés de professores universitários. Eram tempos em que senhores conservadores, que professavam um credo liberal, todos falavam português, ao contrário do dialeto assemelhado que é usado hoje por figuras públicas. E usavam roupa de gala (Bento e Café Filho), provavelmente porque em seguida iriam ao baile chic no Palácio Iguaçu.
Retrato do clima da época, é, no contexto sempre solene da universidade, o caráter aguerrido dos discursos. Café Filho bradou: “Urge encerrar, entre nós, o ciclo das místicas providenciais e da crença em soluções milagrosas.”. O professor Munhoz de Mello, falando em nome da congregação, disse que “o povo brasileiro ... dispõe-se ao sacrifício em prol do restabelecimento da verdadeira democracia no Brasil...” Nesta mesma toada foi o Reitor Flávio Suplicy, que disse: “As universidades brasileiras têm para elas o destino de manter uma obra de fé. Isto, porém, que não implique na crença ingênua de constantes milagres de salvação nacional, ou na suficiência pedante e sem conteúdo de uma elite que ... acabou sendo decepcionante fracasso...”
Não era preciso dizer quais seriam as soluções milagrosas, de salvação nacional, e a qual democracia se referiam. O fantasma de Getúlio pairava sobre todos.
Mas a festa destinava-se à prestação de contas do Reitor. E aqui trago algo sabido de todos que frequentaram a Universidade Federal do Paraná. O homem era incrivelmente operante. Nada sei dele na cátedra (ele lecionava Resistência dos Materiais na Engenharia), mas como administrador, saiam de baixo, rapazes. Nunca houve, e provavelmente nunca haverá, na Universidade Federal, um administrador mais operoso e eficiente que ele. Federalização da universidade? Ele liderou o movimento. Não fosse isso, nossa universidade continuaria sendo uma pobre iniciativa da província pobre. O prédio da Praça Santos Andrade, o bloco da Reitoria, o Hospital de Clínicas, o bloco da CEUC e RU, o Centro Politécnico, todas iniciativas dele, e todas inauguradas por ele. Há mais, muito mais. A partir de seu reinado, em 1949, que durou praticamente até sua retirada, com um pequeno intervalo em que esteve à frente do MEC, sua iniciativa transformou a universidade, de um pequeno conglomerado de escolas isoladas, em uma das maiores universidades do Brasil.
A radicalização política vigente no Brasil – ele sendo um Lacerda, naturalmente liderou um dos lados, pós 64 – o transformou em um demônio a ser derrubado, como fizeram com sua estátua, hoje felizmente restaurada pela Reitoria. (Não gosto que derrubem estátuas e queimem livros).
No Relatório do ano de 1954, leio que, para a reforma e ampliação do novo prédio da Santos Andrade, a reitoria convidou três firmas construtoras, tendo selecionado uma delas, a de condições mais vantajosas”. (A firma escolhida foi a Iwersen, Loyola & Pierri). Em outra concorrência, a única firma proponente (Gutierrez, Paula & Munhoz) apresentou um preço “que foi tido como exagerado pela comissão designada”. Consultada, a firma concordou em dar um desconto de 6%, desde que houvesse, por parte da universidade, concordância com atualização dos preços, se comprovada alteração dos preços dos materiais e da mão de obra, “para mais, ou para menos”.
Simples assim.
O Brasil já foi um país de cavalheiros.
Entre os alfarrábios esquecidos na estante, pinço o Anuário da Universidade do Paraná de 1954. Eu o adquiri em um sebo, e registro aqui que foi, antes de cair no mundo e nas minhas mãos, propriedade do Prof. Ralph Hertel, que o carimbou. Aliás, no anuário, consta o seu nome entre os docentes da Universidade, cadeira de Botânica. A Universidade do Paraná, em uma Curitiba de 183 mil habitantes, é outro daqueles milagres a que estávamos acostumados, e que perdemos, no mar de mediocridade em que o Brasil afundou.
Um belo texto sobre momentos da história do Paraná! Parabéns Hatsuo!
Belo artigo. Bom resgate da memoria desse tempo antes do "mar de mediocridade" . Parabéns Hatsuo