Resgatando a imagem de um grande paranaense.
Arthur Virmond de Lacerda Neto
Imagem a partir do acervo do autor.
Na história nacional há personagens polêmicas, como temas de modos de ver divergentes, muitas vezes subordinados a espírito de pormenor, em que dada particularidade de sua atuação social serve de critério exclusivo ou principal de julgamento, em lugar de serem avaliados com espírito de conjunto, que leve em conta a globalidade de sua atuação. Floriano Peixoto, os bandeirantes, d. João VI (por exemplos), são temas de juízos muitas vezes injustos porque parciais e que se tornaram hegemônicos, à custa de sua reiteração e da ausência de contrapontos que se lhes faça.
Fenômeno análogo dá-se com a figura do paranaense Flávio Suplicy de Lacerda (1903 – 1983), engenheiro civil, professor na Universidade Federal do Paraná, seu reitor, e ministro da Educação.
Terceiro reitor da então Universidade do Paraná, foi à sua reitoria reconduzido diversas vezes, com o que a ocupou por vinte e um anos, ao longo dos quais incrementou enormemente aquela: ao assumir-lhe a reitoria, a Universidade consistia apenas no (então exíguo) prédio da praça Santos Andrade; ao deixá-la, ela contava com o dito prédio ampliado (em suas laterais, na sua retaguarda e reformado em sua fachada, que se dotou da colunata), com o Centro Politécnico, com o Hospital de Clínicas, com os três prédios da reitoria, com a Casa da Estudante Universitária, todos construídos de raiz nas gestões de Flávio, que também instituiu a universidade volante (sistema de cursos itinerantes ministrados no interior do Paraná), cursos de verão (abertos ao público em geral), a imprensa e a orquestra universitárias. Para mais, ele alcançou a federalização da universidade, o que a tornou de privada e paga em federal e gratuita.
Por ano e meio, no intervalo de 1964 a 1966, Flávio ocupou o cargo de Ministro da Educação no governo do marechal Castelo Branco; foi mentor da lei 4464/64 (cognominada lei Suplicy de Lacerda), que estabeleceu a obrigatoriedade do voto nas eleições dos grêmios estudantis, em que a maioria dos estudantes se abstinha e em que a minoria militante elegia diretorias politicamente empenhadas, e de esquerda.
O exercício do cargo de ministro no governo de Castelo Branco e a promulgação daquela lei suscitaram, de então a esta parte, hostilidade ininterrupta de muitos quadros da própria UFPR contra a memória de Flávio: formou-se discurso uniforme de animadversão a ela, em que se enfatiza (e verbera) sua atuação como ministro e em que se busca obscurecer-lhe o papel como reitor. Da parte de professores, alunos e administradores havia quase unânime maledicência para com sua memória e até a atitude de materialmente apagar-se-lhe o nome e a imagem (no que atualmente chama-se “cancelamento”), como se deu com a vandalização de seu busto, derrubado em 1964 e em 2014; com o letreiro “Centro Politécnico Professor Flávio Suplicy de Lacerda”, fixado na entrada do campus politécnico e arrancado, de noite, em 1986; com duas placas que lhe continham o nome, removidas do gabinete do reitor, e com outras, de vultosas dimensões, retiradas dos edifícios D. Pedro I e D. Pedro II.
Estátua de Flávio Suplicy de Lacerda sendo vandalizada - Acervo do autor
Na mesma pessoa há duas personagens: o reitor e o ministro, de que o primeiro atuou por vinte e um anos, e o segundo, por ano e meio. Aquele dotou a UFPR de novas e amplíssimas instalações, proveu-a de inúmeros cursos, abriu centenas de novas vagas discentes, propiciou gratuidade aos estudantes; o ministro contrariou os interesses da esquerda estudantil e da esquerda vitoriosa como autora da narrativa de senso comum no que entende com a história brasileira de 1964 a 1982.
Como sói-se dizer, a história é contada pelos vencedores, como autores das versões que se entranham no espírito público: é o caso da narrativa tradicional em relação a Flávio Lacerda nos quadros da UFPR, que o execram como ministro do regime militar, execração que não se registrou na bibliografia, contudo acha-se presente nos espíritos e nas atitudes.
O apagamento de sua figura repetiu-se, indiretamente, com a publicação (em 2012), de Universidade Federal do Paraná. 100 anos, de Márcia Dalledone Siqueira, edição oficial da UFPR. Memorando de história da UFPR, trata também de Flávio Lacerda, cuja atuação como reitor não poderia sonegar; sonegou, contudo, uma fonte bibliográfica, a saber, O Magnífico Reitor (da autoria de Arthur Virmond de Lacerda Neto, de 1988) que descreve a atuação de Flávio como reitor e que integra a Estante Paranista, coleção numerada de livros publicados pelo Instituto Histórico do Paraná, onde é consultável, bem assim na Biblioteca Pública do Paraná.
Na bibliografia de Universidade Federal do Paraná.100 anos observa-se que a autora recorreu aos ditos Instituto e Biblioteca; tal bibliografia, contudo, não menciona O Magnífico Reitor. Não é possível que em pesquisa relativa à UFPR e que envolve Flávio, a autora não houvesse encontrado livro disponível e que se ocupa exatamente dele como reitor; basta percorrer a lista de livros publicados pelo Instituto Histórico para que o título O Magnífico Reitor chame a atenção de qualquer pesquisador.
Despretensioso, O Magnífico Reitor patenteou a majestosa atuação de Flávio, no desiderato de documentá-la com algum pormenor e evitar que ela se esquecesse, já pela natural sucessão das gerações, já por efeito do apagamento deliberado de que é objeto; ele também situa em seu contexto a lei 4464/1964, cujo conteúdo e fitos expõe. Para o antiflavismo, é livro inconveniente.
Névio de Campos publicou artigo de nome Flávio Suplicy de Lacerda: genealogia de um membro da elite paranaense (Revista de Sociologia e Política, v. 21, nº 47; 2013); Eliezer Félix da Silva (orientado pelo primeiro) produziu tese doutoral (na Universidade Estadual de Ponta Grossa, aprovada em 2016) intitulada Flávio Suplicy de Lacerda: relações de poder no campo acadêmico/político paranaense e o processo de federalização e modernização da Universidade do Paraná (1930 - 1971).
Golpe de 1964, de Itamar Flávio da Silveira e de Suelem Carvalho (2016), propicia modo de ver acerca do regime de 1964 alternativo da versão de senso comum esquerdista; também é livro inconveniente para os adeptos do discurso (já não de todo hegemônico) concernente ao interregno de 1964 a 1982.
A comunidade paranaense, sobretudo sua parcela universitária, muito deve à operosidade, às iniciativas, às realizações de Flávio na Universidade Federal do Paraná. Nenhum outro reitor exerceu o reitorado por lapso tão extenso quanto ele e nenhum fez por ela tanto quanto ele, graças a quem ela transformou-se de diminuto aglomerado de cursos pagos na vasta instituição que é hoje, e gratuita. A geração que lhe é infensa vai passando e com ela seu espírito vingativo, seu ânimo de verberar a pessoa e de eclipsar-lhe a memória. Sua obra, vultosa, estupenda, permanece como patrimônio dos paranaenses; beneficiou, beneficia e beneficiará pelos tempos em fora sem-número de nossos concidadãos, inclusivamente os que o amaldiçoam.
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