Entenda o positivismo sem as equivocadas noções que esquerda e direita possuem...
Arthur Virmond de Lacerda Neto
Augusto Comte, pai do Positivismo. Imagem de Wikipedia
Por décadas, grassou no Brasil corrente anti-Positivista, composta já por monárquicos e católicos, já por marxistas, já (atualmente) pelos chamados “conservadores”, em seu esforço contínuo de vilipendiar o Positivismo e sua contribuição, corrente expressa por autores como Eduardo Prado, João Camilo de Oliveira Torres, Ricardo Vélez Rodrigues, Antonio Paim, Roberto Gomes, Lelita Benoit, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Ramalhete, Marilena Chauí, Olavo de Carvalho, olavinhos e olavizados (o que abarca jornalistas da Gazeta do Povo); também por militares, notadamente dos anos 1930 por diante, inclusivamente até 1964 e lustros seguintes a tal ano.
A produção intelectual de tais publicistas, no que entende com o Positivismo exprime mais do mesmo espírito a ele hostil, da mesma carência de conhecimento direto da obra de Comte e da de seus discípulos (Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Carlos Torres Gonçalves, Alfredo Severo, Pedro [Pierre] Laffitte e outros), do mesmo ânimo de recusá-lo perante o geral dos leitores e perante o ambiente universitário, a modo de compor senso comum de antipositivismo tosco, militante e anacrônico, tipicamente brasileiro, que exprime a contribuição nacional para o rebaixamento da produção intelectual e para a propagação da desinformação, no que toa com o Positivismo.
Apenas ignaros ou também maliciosos, o geral dos adversários do Positivismo desconhece que sejam ordem e progresso: são noções científicas, aplicáveis aos fenômenos em que encontramos certa forma de organização e certa maneira de modificarem-se: a organização, o arranjo, a disposição, a estática, em sociologia Augusto Comte chamou ordem; o modo de alterarem os fenômenos sociais, sua atividade, seu movimento, sua dinâmica em sociologia Augusto Comte chamou progresso.
Há estática e dinâmica em matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia, psicologia; eles não correspondem a sinônimos de (a) regime político autoritário (militar ou civil) e capitalismo, (b) segurança e desenvolvimento, (c) ordem burguesa e capitalismo, (d) espírito de hierarquia e disciplina, e manutenção de relações opressivas: tais são interpretações fantásticas e erradas.
Em cada fase histórica, constitui-se, espontaneamente, certo estado de coisas, certa ordem (no sentido de organização, arranjo, disposição das instituições, das convicções, dos costumes, do poder político, dos formadores de opinião), que não é perfeita nem necessariamente a melhor possível: a noção positiva de ordem espontânea discrepa de sua aceitação passiva e resignada; ao revés: espíritos bem formados e racionalmente preparados evitam confundir a “noção científica da uma ordem espontânea com a apologia sistemática de qualquer ordem existente”[1]. De facto: em relação aos fenômenos quaisquer, a filosofia positiva ensina estabelecer-se, espontaneamente, certo arranjo, sem jamais o pretender isento de inconvenientes, modificáveis até certo grau, por sábia intervenção humana. Mais desordenados de todos, os fenômenos sociais são, concomitantemente, os mais alteráveis[2]: o Positivismo nega o fatalismo em sociologia e reconhece a capacidade modificadora humana.
A ordem natural é “amiúde muito imperfeita”[3], pelo que o Positivismo convida à intervenção humana, que se exerça “sábia e ativamente”[4], visto serem os “fenômenos sociais [...] ao mesmo tempo os mais modificáveis de todos e os que têm mais necessidade de ser utilmente modificados […]”[5].
À medida que as pessoas atuam e produzem resultados e reações, o estado de coisas vai se constituindo em certa medida empiricamente, ao sabor das iniciativas pessoais e das reações alheias. Nem sempre tudo corre bem, nem sempre tudo está bem: hemos de providenciar, de solucionar, de conciliar desarmonias, de atender a novas situações, de retificar desacertos — em suma, a ordem social merece aperfeiçoamentos, até exige-os.
Daí a necessidade da intervenção que sabiamente modifique para melhor o que existe. Não apenas os fenômenos sociais são os mais mudáveis, mais sujeitos à indústria humana, como esta deve dicar-se a melhorar tanto quanto possível tudo quanto possível: “[…] intervir, com sábia energia, em todos os casos modificáveis […] é o caráter prático da existência positivista, individual ou coletiva.”[6]. Em lugar de estimular a inércia, “o dogma positivista impele-nos à atividade, sobretudo social […]”[7].
Em geral, “o positivismo assina por fito contínuo de toda nossa existência, pessoal e social, o aperfeiçoamento universal, primeiro de nossa condição exterior[8] e em seguida, sobretudo, de nossa natureza interior.”[9] Quatro são os tipos do “aperfeiçoamento humano: primeiro material, depois físico, em seguida intelectual, enfim e sobretudo moral.”[10]
No Positivismo, o espírito republicano de preocupação com o bem-estar da coletividade “vota toda a nossa existência ao aperfeiçoamento universal. Ele obriga-nos a estudarmos a ordem natural para melhor aplicarmos nossas forças quaisquer, individuais ou coletivas, a seu melhoramento artificial.”[11]; ele também valoriza o melhoramento moral que cada um deve exercer em si próprio: “Nosso principal progresso, tanto coletivo quão individual, consiste em desenvolver sempre o império que só pertence a cada um, sobre nossas próprias imperfeições, sobretudo morais.”[12]: a autocrítica, o exame de consciência, a deliberação de retificarmos nossas imperfeições, de moderamos nossos excessos, de fomentarmos nossas qualidades, de procurarmos ser melhores.
Comte examinou a economia de seu tempo, cujo liberalismo, mais metafísico (imaginário) do que científico (observado) examinou e censurou; propôs capitalismo fraternal, em que o capitalista serve de agente de distribuição da riqueza que, tendo origem social, deve ter aplicação igualmente social, pró da elevação geral da condição de vida das pessoas, concepção porque o Positivismo foi e é combatido pelos “conservadores” egoístas, ao mesmo tempo em que o foi e o é pelos esquerdistas que erroneamente o tomam como “ideologia burguesa”, a despeito de sua vocação pró-trabalhadores.
Missões do Positivismo são as de:
I) instaurar novo poder espiritual, reitor de sentimentos, opiniões e costumes humanistas, de liberdade e generosidade.
II) Substituir a ética teológica por outra, antropocêntrica, com substituição de valores e critérios direta ou indiretamente bíblicos por outros, diretamente justificados em motivos humanos.
III) Incorporar o proletariado à civilização, isto é, elevar a massa humana às riquezas morais, intelectuais, materiais, afetivas da civilização, o que, por sua vez, vez, supõe conhecimento da “economia natural, que é preciso primeiramente estudar e respeitar para chegar a melhorá-la”[13].
O Positivismo é conservador, não no sentido partidário que a política brasileira coeva associa a tal adjetivo; é-o na acepção de manter o bom enquanto se melhora o que seja de mister aperfeiçoar: “conservar e melhorar”[14], como o conservadorismo romano. Dissociemos o Positivismo e seu conservadorismo das opiniões partidárias e até religiosas ora em curso no Brasil, bem ou mal denominadas “conservadoras”, e de seus próceres; associemos o Positivismo e seu conservadorismo com sua própria doutrina e seus modos próprios de ver a sociedade, os valores, a economia, a religião, a república.
Em cada época, a marcha natural da evolução histórica determina os aperfeiçoamentos oportunos a serem aplicados no conjunto da sociedade e ou em seus pormenores[15]; daí o aforismo de Comte: “Saber para prever, a fim de prover”, em que o terceiro verbo exprime, em sentido geral, a ação humana, que o Positivismo colima seja movida pela vontade do homem esclarecido, com espírito republicano e sentimentos generosos. O reformismo positivista concilia o aperfeiçoamento com a conservação[16].
Conservadorismo não implica imobilismo; conservar difere de cristalizar; reformismo importa em mudança para melhor; o conservadorismo positivista implica a conservação do bom e o melhoramento do necessário. Eis porque o Positivismo, republicano, humanista, libertário e fraternal, é a filosofia do melhoramento: é doutrina melhorista.
Para saber mais:
a) Opúsculos de filosofia social. Augusto Comte. Com tradução no Brasil.
b) Discurso sobre o espírito positivo. Augusto Comte. Com tradução no Brasil na coleção Os Pensadores.
c) Catecismo positivista. Augusto Comte. Com tradução no Brasil na coleção Os Pensadores.
d) positivismodeacomte.wordpress.com. Blogue de Arthur Virmond de Lacerda Neto, com miscelânea de artigos e autores sobre Positivismo. Contém a única tradução completa (e em português castiço), do primeiro capítulo do vol. I do Sistema de política positiva, de Augusto Comte (reproduzido parcialmente na coleção Os Pensadores).
e) A república positivista, de Arthur Virmond de Lacerda Neto. Expõe o pensamento republicano do Positivismo e sua influência na organização primordial da república brasileira.
f) A desinformação anti-Positivista no Brasil, de Arthur Virmond de Lacerda Neto (no mesmo volume em que se publicou Pequena história da desinformação, de Vladimir Volkoff). É raríssimo. Versão ampliada em positivismodeacomte.wordpress.com.
g) O Positivismo no Brasil, de Mozart Pereira Soares. É boa sinopse do Positivismo e de sua presença no Brasil.
h) A sociologia de Augusto Comte, de Jean Lacroix; A Ordem Política e Social em Augusto Comte, de Gian Luigi Destefanis. São dois livros em um só volume.
i) As falsas bases do comunismo, de Alfredo Severo dos Santos Pereira. Expõe o modo de ver do Positivismo no que diz respeito a capital, trabalho, materialismo histórico, comunismo, luta de classes. É livro que os “conservadores” brasileiros carecem de ler.
j) O Positivismo. Teoria e prática. Hélgio Trindade (organizador), 3º edição. É miscelânea de ótimos ensaios sobre o Positivismo como doutrina e como influência no Brasil.
k) História do Positivismo no Brasil, de Ivan Lins. Em PDF no sítio do Senado Federal.
l) Positivismo. Reabrindo o debate. Hermas Gonçalves Arana.
[1] COMTE, Curso de filosofia positiva, IV, 247.
[2] COMTE, Curso de filosofia positiva, IV, 247, 248.
[3] COMTE, Curso de filosofia positiva, IV, 249.
[4] COMTE, Curso de filosofia positiva, IV, 249.
[5] COMTE, Curso de filosofia positiva, IV, 249.
[6] COMTE, Sistema de política positiva, I, 355.
[7] COMTE, Sistema de política positiva, I, 55.
[8] Condição exterior: o meio material, físico, em que a humanidade existe; tudo quanto pertence ao mundo e não às pessoas.
[9] Natureza interior: tudo quanto diz respeito às pessoas (compleição, saúde, moralidade, afetividade, virtudes, cultura). COMTE, Sistema de política positiva, I, 106.
[10] COMTE, Sistema de política positiva, I, 109. Cf. p. 28, 29, 30, 108.
[11] COMTE, Sistema de política positiva, I, 323.
[12] COMTE, Sistema de política positiva, I, 327.
[13] COMTE, Sistema de política positiva, I, 27.
[14] COMTE, Apelo aos conservadores, edição do Apostolado Positivista do Brasil, p. XIII. A tradução é de Miguel Lemos, em que a construção “conservar melhorando” contém galicismo.
[15] COMTE, Plano dos trabalhos necessários para reorganizar a sociedade, apud SARTORI, Eric: Le socialisme d´Auguste Comte, p. 107.
[16] COMTE, Sistema de política positiva, IV, 370.
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