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Foto do escritorManuel Rosa de Almeida

OS LIMITES DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO


Um diálogo ao estilo platônico.


Imagem de139904porPixabay

Desta feita Fábio veio a encontrar Hipólito na Praça Carlos Gomes. Quando chegou, Hipólito comia pipoca sentado num banco. Tinha um pacote reservado que ofereceu ao estudante.


FÁBIO - Ora, obrigado.


HIPÓLITO - Não há de quê. Nada como conversar comendo pipoca. Sobre o que conversaremos hoje?


FÁBIO - Quais são os limites da liberdade de expressão. Um trabalho de filosofia. A professora sugeriu que deveríamos começar pela pergunta: A liberdade de expressão deve ter limites?


HIPÓLITO - Numa sociedade ideal, não. Todos os direitos fundamentais deveriam ser ilimitados. Numa sociedade ideal, contudo, tais direitos sequer estariam expressos numa constituição, porque sequer seriam necessárias leis.


FÁBIO - Mas certamente não vivemos numa sociedade ideal.


HIPÓLITO - Nem nós, nem nenhum ser humano. Nenhuma sociedade humana é ideal porque o ser humano é eminentemente falho.


FÁBIO - Então assumimos que a liberdade de expressão tem limites.


HIPÓLITO - Como qualquer outro direito. Em verdade, esta questão é mais simples do que parece.

FÁBIO - Mesmo?


HIPÓLITO - Penso que sim e que você concordará comigo. Se fizermos comparação com outros direitos e garantias fundamentais, talvez seja mais simples o entendimento.


FÁBIO - E com que direitos faremos tal comparação?


HIPÓLITO - Sugira um.


FÁBIO - Humm… que tal a liberdade de ir e vir?


HIPÓLITO - Perfeito. E sugiro também a inviolabilidade de domicílio.


FÁBIO - De acordo.


HIPÓLITO - O direito de ir e vir é absoluto?


FÁBIO - Não.


HIPÓLITO - Dê-me exemplos da restrição deste direito.


FÁBIO - Ora… eu não posso simplesmente pular o muro do vizinho e entrar na sua casa…


HIPÓLITO - De fato não. Como não pode entrar num cinema sem pagar o ingresso ou invadir o pátio de uma fábrica. Portanto, o direito à propriedade já limita a liberdade de ir e vir. E quanto aos espaços públicos?


FÁBIO - Bem… aí é diferente.


HIPÓLITO - Há bens públicos que são de uso comum: vias, praças, largos. Nestes o direito de ir e vir é amplo. Há outros bens que sofrem restrições de acesso por horário e pagamento de ingresso, como alguns parques, por exemplo. E há outros de uso restrito. Repartições públicas na maior parte de suas instalações. Portanto, mesmo entre bens públicos, há limitações à liberdade de ir e vir. Alguém cria caso com isso?


FÁBIO - Não.


HIPÓLITO - De fato não. Todos entendem a razoabilidade disso. Agora, consideremos os locais de livre locomoção a qualquer hora. Esta praça, por exemplo. A liberdade de ir e vir é absoluta?


FÁBIO - Penso que sim.


HIPÓLITO - Mas não é. Estamos sentados neste banco. É lícito que uma pessoa, alegando seu direito de ir e vir, venha e sente-se entre nós dois?


FÁBIO - Bem.. é e não é.


HIPÓLITO - É e não é... isso não é resposta. Não é. Porque esta pessoa hipotética estaria violando outros direitos nossos.


FÁBIO - Que direitos?


HIPÓLITO - Privacidade. E até decoro. A pessoa não pode impor simplesmente sua proximidade. Estaria causando um indevido constrangimento.


FÁBIO - De fato. Concordo.


HIPÓLITO - E que me diz da inviolabilidade de domicílio? É um direito absoluto?


FÁBIO - Imagino que não.


HIPÓLITO - É uma das garantias mais respeitadas. Mesmo a polícia precisa de um mandado para entrar na sua casa. Mas mesmo assim, não.


FÁBIO - Dê-me um exemplo.


HIPÓLITO - Ora, acabei de dar. A polícia, munida de um mandado de busca e apreensão, por exemplo, pode entrar na sua casa.


FÁBIO - Dê-me outro.


HIPÓLITO - Se você passa em frente a uma casa e ouve uma mulher gritando desesperadamente por socorro. Pode invadir a casa?


FÁBIO - Posso?


HIPÓLITO - Pode. Se estiver presenciando uma situação de flagrante delito, ou fundada suspeita de flagrante delito, você pode entrar na residência alheia. Sabe porquê?


FÁBIO - Porque a lei autoriza?


HIPÓLITO - Sim. E porque é razoável.


FÁBIO - E quanto à liberdade de expressão?


HIPÓLITO - Basta aplicar os mesmos princípios e a mesma razoabilidade.


FÁBIO - Ajude-me a estabelecer estes limites da razoabilidade…


HIPÓLITO - Estabelecida esta comparação com outros direitos, penso que tudo fica mais fácil. Os limites são estabelecidos pela prática de crimes ou por criar constrangimentos indevidos a outras pessoas.


FÁBIO - Quando a liberdade de expressão pode configurar crime?


HIPÓLITO - Fácil. Injúria, difamação, calúnia. Todas práticas criminosas.

FÁBIO - Qual a diferença entre elas?


HIPÓLITO - Não sou jurista. Mas arrisco dizer. Pela ordem: xingar alguém, atribuir um comportamento vergonhoso a alguém, atribuir a prática de um crime a alguém. E tudo isso cria constrangimento indevido.


FÁBIO - Ah…


HIPÓLITO - Mas não é só isso. Quando a liberdade de expressão é usada para desinformar em questões importantes, isso é permitido?


FÁBIO - Não deveria ser…


HIPÓLITO - Por quê?


FÁBIO - Porque… pode criar constrangimento indevido a alguém?


HIPÓLITO - Muito bem! Consegue imaginar uma situação?


FÁBIO - Não.


HIPÓLITO - Imagine uma rádio que divulga propositadamente o local de um evento em endereço equivocado, de modo que milhares de pessoas perdem seu tempo indo ao lugar errado. Ela pode fazer isso?


FÁBIO - Não.


HIPÓLITO - Se esta mesma rádio indica um medicamento para um uso inadequado. Pode?


FÁBIO - Não.


HIPÓLITO - Se esta mesma rádio ou um jornal qualquer, investe contra princípios e valores sedimentados e aceitos pela sociedade?


FÁBIO - Como assim?


HIPÓLITO - Pense num jornal que apregoa a superioridade da raça branca. Ou uma rádio que defende abertamente a ditadura. Pode?


FÁBIO - Claro que não.


HIPÓLITO - Não pode. Porque cometem crimes e criam constrangimentos indevidos a inúmeras pessoas. Assim também não se assegura liberdade de expressão a quem deseja acabar com a liberdade de expressão. Porque não é razoável. Atenta contra um princípio da democracia. É criminoso e cria constrangimentos indevidos.


FÁBIO - Mas limitar a liberdade de expressão não é censura? Não é o que a ditadura fazia?


HIPÓLITO - Boa e necessária intervenção. Não é a mesma coisa, mas é preciso ter cuidado. Primeiro é preciso entender que a ditadura fazia censura prévia e submetia as pessoas a tribunais de exceção.

FÁBIO - Como assim?

HIPÓLITO - Na ditadura havia censores dentro da redação dos jornais. Espetáculos musicais e peças de teatro tinham que submeter seu roteiro previamente à censura. Assim também filmes e programas de televisão. Isso é censura prévia. Algo bem diferente do que responder por excessos, após haver exercido o direito de livre expressão. Como vivíamos em estado de exceção, também os tribunais eram de exceção, visto que composto por indicações da ditadura e obedecendo às suas ordens. Então, são coisas bem diferentes. Impedir a livre expressão ou permiti-la, ainda que fazendo a pessoa responder por ela dentro dos limites da lei e perante um juiz legítimo.


FÁBIO - Não há dúvida. Bem diferente.


HIPÓLITO - Ainda assim, mesmo hoje é preciso cuidado ao apreciar a questão, para limitar o direito minimamente. Mas penso que chegamos a um consenso. É tudo uma questão de razoabilidade. Por isso começamos dizendo que numa sociedade ideal essas questões nem seriam discutidas. Porque numa sociedade ideal todos seriam razoáveis e respeitariam os direitos alheios. Assim, a liberdade de expressão seria total, porque as pessoas não exorbitariam deste direito. E se um ser externo, por desequilíbrio ou prepotência, fizesse uso de um discurso disruptivo ou de ódio, simplesmente seria desprezado. Ninguém o levaria a sério. Como disse: numa sociedade ideal a lei seria ociosa e desnecessária.


FÁBIO - Infelizmente, há muito excesso em atos, palavras e omissões. A sociedade ideal não é nosso caso.


HIPÓLITO - Não é o caso do mundo. Logo…


Terminaram calmamente sua pipoca e despediram-se.


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