A MORTE E A MORTE DE MARIA BUENO
- Hatsuo Fukuda

- 1 de jun. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: há 5 dias
Maria Bueno, moça parda ou branca, lavadeira ou prostituta, virgem ou mulher de vida fácil. Para seus fiéis, nada disso importa: ela é a esperança de alívio aos sofrimentos da vida, para católicos ou umbandistas, crentes ou ateus.

Na certidão consta que era uma moça cafuza, de 30 anos. Outros cronistas dizem-na parda. Ela morava na Rua Saldanha Marinho, esquina com a Rua Visconde de Nácar, numa casinha de madeira que hoje não existe mais. Cafuza ou parda, na linguagem peculiar da terra, significa que era uma moça de pele azeitonada, onde se misturaram brancos, negros, indígenas. Enfim, uma moça da terra.
Alguns a dizem marafona, mulher de vida alegre; outros, lavadeira de profissão. Em uma crônica publicada na Gazeta do Povo, não assinada, lê-se que na inquirição das testemunhas – nenhuma delas tendo presenciado o crime – divagou-se sobre os antecedentes da vítima.
Conta-se que um moleque teria levado a ela um recado para se encontrar com o namorado em um bosque onde foi encontrada. Mas talvez fosse um encontro marcado desde sempre entre os amantes, não se sabe. Sabe-se que o corpo foi encontrado, a cabeça quase separada do corpo, as mãos com marcas fundas de faca (o que significa que houve resistência), no dia seguinte, atraindo a multidão habitual de curiosos.
Teria acontecido assim: seu namorado, Inácio José Diniz, um anspeçada (uma espécie de cabo) que servia no quartel do 8.º Regimento de Cavalaria, teria fugido de seu plantão, corrido até o ponto de encontro, na Rua Vicente Machado (entre as ruas Visconde de Nacar e Visconde do Rio Branco), na época um bosque, matado a moça e retornado ao quartel, onde jogou no poço sua gandola azul manchada de sangue e o punhal. Acusado do crime, negou. Mas logo foi retirado do poço o material, a gandola com seu número de soldado nas costas.
Julgado, foi absolvido pelo corpo de jurados, todos homens, por 11 a 1.
A promotoria recorreu, e preso o anspeçada aguardou o resultado do julgamento.
Então, o primeiro milagre – assim visto pelo seu fã-clube.

O General Gumercindo Saraiva ocupou a cidade de Curitiba durante a Revolução Federalista, em 1894. Primeira providência, esvaziar as cadeias. O anspeçada foi libertado e juntou-se à tropa revolucionária. O valente pica-pau transformou-se em honorável maragato.
Como estava escrito nas estrelas, em seguida um comerciante foi se queixar ao General Gumercindo do roubo de uma mula e assassinato de um homem na Estrada do Bacacheri (outros dizem Pilarzinho). O caudilho reuniu a tropa em duas fileiras no pátio do quartel e os dois ladrões
foram reconhecidos pelo comerciante. Interrogados na frente da tropa pelo general, confessaram.
A justiça revolucionária se fez, imediata. Um deles correu e foi fuzilado na fuga; outro, Inácio José Diniz, ajoelhou-se e pediu clemência ao general, mas a ordem foi cumprida. Gumercindo era um gaúcho honrado, estava fazendo uma revolução, não uma pilhagem.


No local onde Maria Bueno foi assassinada, ergueu-se uma cruz, que, alguns anos depois, foi levada ao Cemitério Municipal, onde está o seu túmulo. É fácil de localizá-lo: logo na entrada do cemitério, na primeira alameda à direita de quem entra, quase encostado ao muro que dá frente à Praça do Skate, você encontrará uma multidão de ex-votos, bilhetes e flores próximos a uma pequena capela que abriga os seus restos. É o mais visitado dos túmulos do cemitério, segundo a própria prefeitura municipal.

Uma estátua de gesso foi colocada no alto da capela. Ela está estranhamente parecida com as imagens que se fazem de Nossa Senhora; sua pele branqueou. No interior da capelinha, duas fotos de Maria Bueno são exibidas. Como não se tem notícia que lavadeiras em Curitiba, em 1893, freqüentassem estúdios de fotografia (se é que existissem, naquela cidadezinha), e não havendo Toulouse-Lautrecs para retratar marafonas ou mulheres de vida alegre, tais imagens não devem guardar fidelidade à original. Mas isso pouco importa aos fiéis, que vêem nelas antes um símbolo daquilo que acreditam.
Uma tarde passei em frente ao local onde ela teria morado, na Rua Saldanha Marinho, cheio de minhas pobres preocupações mundanas. Na esquina com a Alameda Cabral, topei com Batista de Pilar, poeta e frequentador da noite curitibana. Parei para conversar. Ele estava com boa aparência, forte, sóbrio e com a mente afiada e bem-humorada. Era uma tarde de sol, e a rua estava pouco movimentada.
Em certo momento, uma borboleta pousou no ombro dele, sob nossos olhares atentos. Foi um momento breve, mas que chamou a atenção do poeta. Por um momento, o tempo parou. Logo ela alçou voo à procura de outros ombros.
Comovido, lembrei do poverello de Assis e sua oração:
“Ó mestre, fazei com que eu procure mais consolar que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se vive
Para a vida eterna.”
No dia do aniversário de sua morte, 29 de janeiro, e no Dia de Finados, uma romaria de devotos comparece ao Cemitério Municipal para fazer suas preces e pedidos. Francisco de Assis sabia das coisas: é morrendo que se vive para a vida eterna.
No coração de seus fiéis, Maria Bueno vive.
(Hatsuo Fukuda)

Hatsuo Fukuda é um céptico, mas acredita em verdades eternas e borboletas mágicas.










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