MARCO POLO VOLTA À CHINA
- Hatsuo Fukuda

- há 14 minutos
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Hatsuo Fukuda
Um artigo no New York Times chama minha atenção. Em um trabalho que mostra a habitual competência editorial do Times, recheado de pequenos vídeos ilustrativos e detalhes que só um jornalista experimentado é capaz de trazer, o artigo, assinado por Keith Bradsher e vídeos por Qilai Shen, relata as aventuras no admirável mundo novo que é a China de hoje, nas cidades de Hefei e Wuhan, centros tecnológicos da China contemporânea. O Estadão republicou o artigo, mas expurgando-o dos vídeos.
Embora jornalístico, a nota dominante lembra Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues: “Não sei se o que trago no peito é ciúme, despeito, amizade ou horror”. Briga de cabaré? Pobre Lupicínio. Quem diria que suas noitadas poético-etílico-amorosas viriam a ilustrar a disputa entre as potências imperiais?
Alguns exemplos trazidos pela reportagem: os 48 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade que ligam todas as grandes cidades da China, a 350 km/h. Os helicópteros sem piloto que podem ser alugados em Chenzen. As entregas de comida por drones. Os táxis sem motorista. Os caminhões de entrega robotizados. A lista é infindável, e o articulista, provavelmente por determinação editorial, se restringiu ao quotidiano das cidades, ignorando deliberadamente a transformação profunda em curso na economia. Um exemplo: robôs que cuidam de plantações de tomates.
Fábricas totalmente automatizadas, que funcionam no escuro, 24 horas por dia, sete dias por semana, produzindo carros (porque vocês acham que os carros da BYD são tão baratos?)
O despeito por mim detectado (posso estar enganado) reflete as carências americanas de hoje. Há mais de 30 anos a Califórnia não consegue construir uma ferrovia ligando San Francisco a Los Angeles. A China construiu esta extensa rede nos últimos dez anos. A aflição vem da constatação a olho nu que a corrida entre os Impérios está sendo perdida pelo Grande Irmão Americano. Ora, qualquer frequentador dos imensos bazares que são a Shein ou Ali Express já sabe disso. Ficaram para trás o desprezo pelas bugigangas “xing-ling”. Não são mais bugigangas e o preconceituoso “xing-ling” denota apenas ignorância.

Talvez o articulista se acalmasse lembrando da observação de Henry Kissinger – no livro On China -, o maior diplomata que o país já produziu no Século XX, que a China, durante dezoito séculos em vinte, foi o maior PIB do mundo. Se, durante mil e oitocentos anos, a China foi a maior economia do mundo – em 1820 seu PIB era maior do que a Europa e Estados Unidos somados -, porque seria diferente agora, reunificada e centralizada?
Quando Marco Polo retornou de sua temporada chinesa, no século XIII, a Europa era uma babel de centenas de línguas e dialetos, e pequenos países, principados, ducados, cidades autônomas, vivendo uma idílica vida rural, interrompida aqui e ali por guerrinhas tribais. A mesquinharia, pobreza, arrogância das elites políticas e uma visão míope do mundo coroavam a miséria em que viviam os povos, afundados em suas aldeias ou em cidades infectas. A Inglaterra ainda estava elaborando as suas maiores ofertas à civilização, a common law e a língua inglesa. Duzentos anos depois apresentaria Shakespeare ao mundo. E mais duzentos e cinquenta para apresentar seu rebento, que lhe arrebataria o bastão de Senhor do Mundo. Mas, ao tempo de Marco Polo, a China há mais de mil e oitocentos anos já vivia sob o efeito civilizador de Confúcio.

Marco Polo, recém-chegado à Veneza após 17 anos na China, tendo na mente sua imensa riqueza, suas estradas, seus canais e rios navegáveis, seus mercados – em todas as grandes e pequenas cidades ou aldeias – a possibilidade de viajar pacificamente por todo o continente sob a ordem propiciada pelo distante e onipresente imperador Kublai Khan e a culta burocracia imperial, treinada na sabedoria confucionista – hoje substituída por um suposto Partido Comunista, mas nem por isso menos confucionista -, narrava com tal entusiasmo suas aventuras que ganhou o apelido de Marco Milhões. Tudo lá se contava na grandeza de milhões, em suas narrativas. Em seu leito de morte, os amigos o instaram a se arrepender das inúmeras mentiras que teria contado sobre a China, mas este respondeu: “Não contei metade do que eu vi”.

E naquele mundo onde não havia livros nem Internet, As Viagens de Marco Polo rapidamente se espalharam pela Europa. Suas aventuras tinham a mesma natureza das Mil e Uma Noites, e como estas, traziam maravilhamento ao leitor, libertando-o das circunstâncias estreitas do mundo medieval. Um outro mundo existia, contava o escritor, e este em seguida seria explorado por milhões de europeus. A América é fruto deste deslumbramento propiciado por Marco Polo. Colombo, o mais famoso dos viajantes, trazia um exemplar na algibeira, ao zarpar com suas três caravelas de Calicute, duzentos anos depois. Rapazes, não subestimem o poder da palavra. Elas podem mudar o mundo, ou, pelo menos, levar um italiano doido a navegar pelo Mar Tenebroso. As palavras enfeitiçadoras de Marco Polo levaram a isso.

A América foi resultado deste pequeno livrinho. O Paraná – Terra de Todas as Gentes, no dizer de Aderbal Fortes e Paulo Vítola -, com sua mistura de portugueses, bantos, iorubás, italianos, polacos, alemães, japoneses, judeus, sírio-libaneses, russos e ucranianos, é fruto tardio destas aventuras a uma terra distante.
Completada a ocupação do mundo pela Europa – o Império do Meio subjugado e humilhado por guerras infames, como a Guerra do Ópio -, este, recuperado o antigo orgulho, retoma a sua posição. O círculo agora se completa.
E novos Marco Polos da imprensa para lá vão, dando notícias de sua imensa riqueza e criatividade.
A série Marco Polo, na Netflix, ficcionaliza as aventuras de Marco Polo na corte de Kublai Khan. Ótima diversão. Esqueça a veracidade histórica. É entretenimento puro. O ator que interpreta Marco Polo, Lorenzo Richelmi, foi, como acontece nas boas produções, eclipsado pelos maravilhosos atores e atrizes que fazem parte da trama – Bendict Wong faz o imperador Kublai Khan. Os atores chineses e coreanos que fazem parte da trama roubaram o espetáculo. Deixe de lado sua ânsia consumista e leia As Viagens de Marco Polo. É bom demais. Se quiser pensar sério no desafio chinês, leia o livro On China, de Henry Kissinger. Bem mais instrutivo do que ler artigos superficiais no jornalão.

Hatsuo Fukuda acha que ouvir Lupicinio Rodrigues é mais divertido que fazer compras na Ali Express.










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