Uma recomendação de leitura para aqueles que gostam de filosofia e história.
Não é de se admirar tenha sido canonizado. Afinal, um homem que se propõe a confessar os pecados de uma vida inteira - fazendo-nos supor que não ocultou nada - e o mais que tem para dizer é sobre o furto das peras de um vizinho, merece ser considerado santo. Brincadeiras à parte, na verdade bem que ele tenta abrir seu coração: confessa os desejos lúbricos, o amor pelo jogo, a vaidade de ser grande orador, o orgulho pelo conhecimento. É tudo, porém, muito relevável, num nível que faria os pecadores de hoje em dia rir como se contemplassem deslizes de criança. Mesmo as relações carnais não podem ser condenadas, pois aconteceram antes de ligar-se a Igreja. Vejam só se não merece ser santo um homem destes…
Muito mais que um homem reto, contudo, Agostinho foi um pensador. Um pensador poderoso que influenciou toda filosofia ocidental até o advento da Escolástica. Com importante influência do neoplatonismo, seu pensamento, ao que parece, desenvolveu-se com maior vigor depois de sua conversão, quando teve mais tempo para dedicar-se à contemplação e à filosofia. A conversão, como ocorre com muitos santos, veio após um episódio de revelação: Agostinho chorava em desespero, à sombra de uma figueira, pedindo a Deus que iluminasse suas trevas de ignorância e maus comportamentos, quando ouviu uma voz infantil dizendo: toma e lê… toma e lê… Ao entrar em casa, buscando pela voz, a ninguém encontra. Deduz que Deus lhe está recomendando abrir a Bíblia, o que faz, justamente numa passagem que o convoca a abandonar todos os vícios. Ficamos com a sensação de que aí tem o dedo de Santa Mônica, a mãe de Agostinho, que sempre envidou todos esforços para convertê-lo à fé católica, ele que transitou pela descrença e pelo maniqueísmo.
Convertido, Agostinho revela-se um filósofo arguto e uma pena agradável de ser lida. É bem verdade que a maior parte das Confissões são destinadas a explicar passagens bíblicas, o que procura fazer com esmero e gênio, mas sempre fiel à fé católica. Assim, trata-se de uma filosofia de justificação. Considerando o homem, o tempo e a presença constante da influência de São Paulo, não poderia ser diferente. Além disso, o próprio Agostinho lamenta que a tarefa está muito além de suas forças. Tanto assim é que - nas Confissões - limita-se a buscar explicar os primeiros versículos do Gênesis, que anunciam a criação do universo. Como dissemos, faz isso com habilidade e brilho, dentro das possibilidades do conhecimento do Século IV, recorrendo, mesmo, a uma série de alegorias. É sua interpretação do texto sagrado, ainda que perfeitamente alinhada.
O que há de mais precioso em Confissões, entretanto, não reside aí. É a especulação de Agostinho acerca do tempo e sua contraposição ao eterno. Neste campo, o pensador aparece com originalidade e talento. Para Agostinho em Deus há apenas o presente - pois passado e futuro não existem Nele. Vejamos a seguinte passagem:
“Os vossos anos não vão nem vêm. Porém os anos vão e vêm, para que todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando já não existirem. Os vossos anos são como um só dia, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se cotidiano, mas é um perpétuo “hoje”, porque este vosso “hoje” não se afasta do amanhã, nem sucede ao “ontem”. O vosso “hoje” é a eternidade".
Confissões - Santo Agostinho - Nova Cultural - Coleção Os Pensadores
Recomendado para quem gosta de filosofia e história; recomendado para leitores iniciados que aceitem bem o estilo clássico de escrever.
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