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Valéria Prochmann

DELINQUENTES URBANOS

O suplício das carreatas

Imagem de @cacadoresdebomexemplos



Não bastasse todo o sofrimento, a pandemia do novo coronavírus acrescenta um fator ao nosso suplício: as carreatas. Manifestantes tanto da esquerda quanto da direita e de diversos segmentos econômicos tomaram gosto por essa forma bizarra e esdrúxula de ação política, invariavelmente com buzinaços. Não há diferenciação em suas mensagens, já que o ronco dos motores e as buzinas soam iguais.

Sob o manto do direito constitucional e democrático à liberdade de expressão e manifestação, os condutores transgridem o tênue limite entre a irreverência e a delinquência. Com seus desfiles de cafonice, tornam infernal a vida de quem está obrigado a ouvir impotente a sua barulheira. Dão show de falta de educação e de empatia. Demonstram sua irresponsabilidade, seu desrespeito ao próximo e à natureza, sua imaturidade arrogante, insolente e prepotente. Sim, é disso que se trata: exibir poder e força de Atenas! Querem chamar atenção, ser vistos e ouvidos a qualquer custo.

Em pleno Século XXI, quando o mundo inteiro se volta para a sustentabilidade ambiental e a inclusão social, esses grupos ostentam seus carrões – símbolos da poluição ambiental, da violência dos acidentes e atropelamentos – sem falar no conceito freudiano de símbolo fálico. Lembro-me de uma palestra sobre Qualidade em que foi dito: “A mulher opera o carro como o faz com um eletrodoméstico enquanto o homem dirige para exibir seu poder.” Como são potentes e fortes!


INFRATORES DAS LEIS


Os cafonas desperdiçam dinheiro despejando combustíveis fósseis no ar. Recursos que bem poderiam ser aplicados em algo mais delicado e útil, como alimentos, agasalhos, máscaras, álcool em gel, primeiros socorros, abrigo ou até mesmo doações a entidades que atendem os desvalidos. Trancam a mobilidade humana nos cruzamentos e rotatórias, passam por cima de canteiros e calçadas, estacionam em locais proibidos – inclusive gramados de praças - e buzinam intensamente. São infratores do Código de Trânsito, que disciplina o uso da buzina.


O condutor de veículo só poderá fazer uso de buzina, desde que em toque breve, nas seguintes situações:

I - para fazer as advertências necessárias a fim de evitar acidentes;

II - fora das áreas urbanas, quando for conveniente advertir a um condutor que se tem o propósito de ultrapassá-lo.

Usar buzina: I - em situação que não a de simples toque breve como advertência ao pedestre ou a condutores de outros veículos; II - prolongada e sucessivamente a qualquer pretexto; III - entre as vinte e duas e as seis horas; IV - em locais e horários proibidos pela sinalização; V - em desacordo com os padrões e frequências estabelecidas pelo CONTRAN. Infração – leve - Penalidade - multa


Além disso, os delinquentes urbanos são contumazes perturbadores de sossego público, infratores da Lei das Contravenções Penais: Art. 42 - Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios – I - com gritaria ou algazarra; (...) III - abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos. Pena – prisão simples de quinze dias a três meses ou multa.


A poluição sonora também constitui crime ambiental quando ultrapassa o limite auditivo da normalidade, estabelecido pela Organização Mundial da Saúde em até 50 decibéis – unidade de medida do som – com consequências para a qualidade de vida humana, da flora e da fauna.

Os mais carentes de atenção agregam ao buzinaço fogos de artifício com estampidos – prática proibida por lei em algumas cidades, como Curitiba – e até berrantes como aqueles vistos na invasão do Capitólio.

Delinquentes urbanos não se veem como tais. Afirmam serem manifestantes pacíficos. Não é pacífico quem causa poluição sonora, perturba trabalho e sossego alheio, infringe leis de trânsito e agride a urbanidade. Por isso a última quarta-feira de abril foi escolhida como Dia Internacional de Conscientização sobre o Ruído (International Noise Awareness Day).




DISFARCES SOCIAIS


Não adianta se dizer defensor da Amazônia, do Pantanal e da Mata Atlântica, mas fazer “buzinaços” nas vias públicas. São falsos ambientalistas. Também não adianta se dizer “cidadão de bem” e infringir as regras da urbanidade. São falsos moralistas.


Pouco lhes interessa se prejudicam o trabalho de médicos, dentistas, fisioterapeutas, psicólogos, professores, advogados, contabilistas, jornalistas, artesãos, técnicos, comerciantes e servidores públicos, os estudos ou o repouso de alguém enfermo ou que trabalhou na madrugada. Ou simplesmente o descanso semanal a que todo ser humano tem direito. Não se pode dormir, ouvir música, assistir a um programa, ler, conversar, namorar, receber visitas.

Esses delinquentes urbanos usam disfarces sociais. Suas causas são nobres: lutas salariais e por remuneração justa, críticas aos governantes, liberdade econômica, protestos contra a corrupção, reformas ou mortes violentas, proselitismo religioso, apoio a este ou àquele político, direitos civis e humanos diversos. Alguns arrecadam donativos – o que pode perfeitamente ser feito sem carreata, gritaria e buzinaço!

A incultura do barulho está tão arraigada que, na campanha de 2018, vi um candidato a deputado que se diz da lei e da ordem numa esquina com um banner assim: “Se apoia o candidato Tal, BUZINE!” Ou seja: viole a lei e a ordem de trânsito!

Tudo que escrevi para condutores de automóveis vale também para motociclistas.

IMPOTÊNCIA E IMPUNIDADE


O cidadão agredido pela poluição sonora, pela perturbação de sossego e pela agressividade no trânsito fica impotente. As autoridades às quais cabe a aplicação das leis frequentemente lavam as mãos e fazem vistas grossas, com receio de serem taxadas como autoritárias ou de contrariarem determinados grupos. Apelos, abaixo-assinados, reclamações, pedidos de providências e estatísticas são solenemente ignorados. Políticos governantes omitem-se em seu dever de disciplinar as manifestações e mediar conflitos entre direitos que se opõem. E assim os delinquentes urbanos seguem impunes.

Ao contrário do senso comum, é possível sim fazer manifestações políticas assertivas, significativas e impactantes sem agredir a civilidade. Delicadeza e perspicácia caem bem.

Em 2011 o Greenpeace instalou um balão gigante em forma de motosserra na Praça dos Três Poderes, em Brasília, com os dizeres: “Senado, desliga essa motosserra” e “Dilma, desliga essa motosserra” em protesto contra o projeto de mudança no Código Florestal.

Em 2019, o estúdio de arquitetura Rael San Fratello instalou três gangorras atravessando o muro na fronteira entre os Estados Unidos (Sundland Park no Novo México) e o México (Ciudad Juárez) para conectar crianças dos dois lados. Foi um lembrete criativo de como os seres humanos podem transcender as forças que procuram dividi-los. O projeto Teeter-Totter Wall recebeu o prêmio Design do ano do Museu de Design de Londres em 2020.

No mesmo ano, jovens norte-americanos oposicionistas compraram milhares de ingressos para comícios de Donald Trump e simplesmente não apareceram, deixando os assentos vazios.

São alguns exemplos de manifestações silenciosas de forte impacto. É possível protestar dançando, fazendo mímica, grafitando, caminhando e até jogando para expressar cansaço, ira, tristeza, decepção, revolta. Vejam o Show Girl Lockdown by Kalon Movement Paris.



Esse debate ganha força no contexto da nova lei do Estado Democrático de Direito, ora em discussão no Congresso Nacional. O direito constitucional à liberdade de expressão e manifestação deve se dar dentro das leis. A manifestação deve ser pacífica, vedado o anonimato.

No âmbito urbano, há a sugestão de instalação de decibelímetros em pontos críticos para que a sociedade tome consciência de seus excessos em poluição sonora, a exemplo do que já ocorre com radares de velocidade automobilística.


A sociedade brasileira precisa repensar seus paradigmas. Quem quer ser respeitado deve respeitar o outro, o que geralmente requer noção de limites. Não precisamos impor aos outros as nossas formas de pensar, sentir e religar. Sejamos mais inteligentes, criativos, inovadores, significativos e pacíficos.


Valéria Prochmann é jornalista especializada em marketing e propaganda


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