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DESENCANTAR


A vida às vezes machuca.

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Imagem de Geminni IA.




Num pedaço de papel, antes de cumprimentá-lo, já estava escrito “sinto muito”. Não sabia se abria o bilhete primeiro ou se me dava um beijo no rosto. No entanto, talvez tomado por uma curiosidade simples, num momento infinito de silêncio, leu a mensagem. Imediatamente, guardou-o no bolso e seguiu com o protocolo social. Sentamo-nos naquela pequena mesa de esquina, com o ar quente dos vinte e muitos graus a nos esquentar as bochechas. Sua expressão era de melancolia e de um certo vazio, pode ser que estivesse um pouco perdido nos próprios pensamentos, mas sequer balbuciou palavra alguma durante algumas dúzias de segundos. Apoiando a cabeça com a mão e o cotovelo na mesa, olhei profundamente naqueles olhos. Olhei através deles. Para qual dos dois estava sendo mais difícil? Eu já não sei mais. Anteriormente àquele encontro, passei alguns dias buscando nas lágrimas algum conforto último, que não veio.


Meu rosto gritava “me desculpe”, porque eu sabia a raridade daquele sentimento. Eu ainda sei, e isso é que dói tanto. Dói de uma forma incisiva e arrependida. As coisas poderiam ter acabado com menos dor envolvida, porém minhas atitudes insistem em desviar do roteiro racional.


Aquela conversa tão difícil foi motivada pelo choque de alguns dias atrás. Num beijo tão cativante, da fatídica sexta-feira, confesso que fiquei perdida em sensações sublimes. E toda a gama de contatos físicos e vezes em que segurou minha mão. A mensagem estava sendo passada e eu me recusava a recebê-la pelo terrível receio de adentrar uma parte mais complexa das relações humanas. Já deitada ao seu lado, ouvi, no escuro “sabe que gosto de você, né?”. Como resposta automática retruquei “claro, eu também…”. Até que virei o rosto e vi algum brilho surgindo naquele semblante tão calmo, relaxado mas cansado depois de algumas horas de intimidade. Senti agulhas na espinha e me dei conta de qual “gostar” estávamos tratando. Não tinha o mesmo sentido para nós dois, então concluí que seria a hora de deixar muito claro que qualquer intenção direcionada a mim diversa da conexão rasa de algumas noites seria perda de tempo. Seria desgaste e frustração puros, ainda que eu tivesse sim, por breves momentos pretéritos, sido tocada pela possibilidade de deixá-lo mais próximo a mim. Levantamos e nos sentamos à mesa, mas, de forma demasiadamente brusca, pedi que fosse embora. Que até poderíamos conversar mais em outro momento. Mas o aperto no peito fez com que eu rejeitasse de pronto algo calmo e bonito. E sumiu como quem rouba uma joia da casa e foge da polícia.


Não queria distorcer as coisas, tampouco inverter a situação. Decidi acolher o pesar e a tristeza com plenitude. Deixei que esses sentimentos me inundassem o espírito, porque abafar isso me custaria caro em algum futuro. Senti um afeto genuíno, numa ironia quase que teatral do destino. Em pouco tempo, fui colocada do lado de lá da mesa. Fui arremessada no canto vazio de quem entrega a notícia do abandono. Seria eu tão idealista assim? Apeguei-me, aos poucos, a todas as potencialidades que esse gostar poderia ter. Não posso calcular exatamente o que ele sentiu ou sente. No entanto, assumi que causei uma mágoa considerável. Confesso que agi durante aquelas semanas antecedentes sem medir minhas ações e sem pensar que no outro poderia haver o protagonista daquela música dos Los Hermanos que indaga de forma insistente, “de onde vem a calma daquele cara?”.


Extrapolando alguns estados de consciência, debrucei-me no conceito da efígie masculina e como algumas das suas características gerais me atravessavam tão fundo o coração, num corte diagonal e cruel. São questões e projeções intransponíveis, que me levam a ora negá-las, ora a persegui-las. E isso mesmo é me ocorreu em relação a ele, com a dureza das convicções petrificadas no meu imaginário por vezes imaturo.


“Tudo bem com você”, perguntou, decidido a entender primeiro a que tipo de interlocutora direcionaria suas palavras. “Estou… mas e você?”, respondi reticente e prevendo o desconforto represado naqueles olhos. O que eu esperava que acontecesse? Era impossível criar uma conexão saudável e sincera. Explanei todos os motivos e vi a compreensão e resignação mudarem sua expressão, da mesma forma que um aluno recebe a notícia de que não reprovou, mas teria que fazer o exame final. Não é, talvez, um adeus. Mas enquanto o afastamento e a frieza não se dissiparem, a despedida é permanente. Enquanto os dias bons não vierem, querido, há que se passar por todos os ruins. É o descompasso de momentos, constatação dura da vida adulta, alguma dificuldade na comunicação e um coração estilhaçado que comandaram o desvio da rota. Que me impediram de continuar. Mas eu não poderia lamentar mais. Não se trata de arrependimento, porque não buscarei jamais remendar o passado, e sim a conclusão irremediável da perda de uma grande chance, que nunca houve.


Eu bem sei o quão difícil é encontrar pessoas como ele, e ainda que se disponham a ver algo bom em mim. O carinho é explícito e não poderia ser menor. Foi crescendo e estabeleceu-se à medida que fui conduzida às sensações de que tanto precisava. É tolice imaginar que esse tipo de troca de experiências e o campo emocional possam se separar completamente em todas as pessoas. Deve-se ter tudo muito claro e também possuir algum grau de frieza para seguir adiante nesses termos. Teria eu esperado esse distanciamento? Há pontos ainda confusos dentro de mim, ou muito difíceis de aceitar para trazê-los à tona assim em um rabisco singelo.


Enquanto esperava meu suco, toquei de leve sua mão, do outro lado da mesa, tentando alcançar alguma conexão verdadeira e demonstrar a sinceridade da minha empatia. Não foram só palavras de conforto. Eu realmente senti muito. E toda vez que algo assim acontece, por mais normal e corriqueiro que seja, atinge cada alma de um jeito único, que não pode ser menosprezado. Procurei tratar os sentimentos do lado de lá como se meus fossem. E tanto assim foi, que acabei por absorvê-los. Seus olhos acumulavam lágrimas, que custavam um pouco a cair. E à medida que foram caindo, tentei secar algumas. Será que isso piorou as coisas? O mundo lá fora ficava surdo e isolado de nós. Foi preciso entrar em um transe para tratar da situação da maneira devida.


Por outro lado, talvez nem o tenha magoado tanto assim. Não sei. E, sinceramente, espero que não. Não é sobre desejar o sofrimento, mas, ao imaginar que tenha se instalado como achei, desesperei-me. Trata-se, em última análise, de remendar no outro as feridas que haviam em mim. E isso me tocou fundo o peito. Senti-me viva e fazendo a coisa certa, pelo menos nos instantes em que me esforcei para isso.


Depois de alguns guardanapos gastos para remediar as emoções extravasadas, havia chegado a hora de terminar aquilo. Naturalmente, cada um para o seu lado, mas não sem antes abraçá-lo com ternura. A vida às vezes machuca.

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