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Foto do escritorHatsuo Fukuda

TAGARELICES

Desdichado el pobre em espiritu, porque bajo la tierra sera lo que ahora es en la tierra.


Fonte: Academia.org.br


Sempre fui um tagarela contumaz, o que já me trouxe muitos dissabores na vida, normalmente saias-justas, mal-entendidos, situações constrangedoras. Mas também com o uso impensado de palavras, causei dor a pessoas amadas, talvez irremediáveis. Houve é claro o outro lado. A tagarelice despreocupada entre amigos em certos momentos trouxeram conforto à vida que de outra maneira seria insuportável. Já é difícil viver a vida com os seus fardos, e um dos seus alívios é a completa fragilidade que descortinamos com os amigos e pessoas amadas, com a conversa franca e despreocupada, sem agenda prévia, sem temores.


Em algum lugar li que esta tagarelice é característica da raça. Segundo este rumor, no Japão feudal os camponeses – e ninguém mais camponês do que eu – sem outra diversão, pois iletrados e sem acesso às delícias da cultura e da riqueza, dedicavam-se nas horas de lazer às conversas despreocupadas. Pode ser. Se non é vero é bene trovato.


Nestes tempos em que vivemos, a tagarelice tornou-se digital e abarca o universo. Lembrando Borges:

Estás dentro

Não há verso nem reverso,

Nem externo muro

Nem secreto centro

E o labirinto abarca o universo.


Borges, pessimista, dizia que ao final do labirinto nem sequer um monstro nos aguarda. Talvez. Conclua você, caro leitor.


Prefiro lembrar de outro pessimista, Machado de Assis. Pensando em sua vida, um negro em uma sociedade de brancos ignorantes e preconceituosos, tinha tudo para ser apenas um homem amargurado e solitário (ele foi, e isso se constata nos seus livros). Ou um capitão do mato, como tantos negros e brancos o fizeram, transformando em ganha-pão o aviltamento da raça. Ou um negro revoltado, voltando-se contra tudo e contra todos, amigos ou inimigos ou aliados, incapaz de ver o final do labirinto em que vivia.


Mas ele teve uma felicidade na vida, e gosto de atribuir a ela um papel central na construção do homem humilhado naquela sociedade miserável: Carolina. No romance Helena, há uma descrição que gosto de identificar a ela:


Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era dócil, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda a casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa, com igual interesse e gosto, frívola com os frívolos, grave com os que o eram, atenciosa e ouvida, sem entono nem vulgaridade. Havia nela a jovialidade da menina e a compostura da mulher feita, um acordo de virtudes domésticas e maneiras elegantes.


Garota fascinante, esta Helena.


Talvez por influência da mulher, Carolina, o negro amargurado se transformou em um mestre da cultura e da civilização. Ensinou à gentalha ignorante a escrever com clareza e elegância, em um primeiro momento; em seus escritos, traçou o retrato para sempre imortal da alma brasileira – e este retrato é feio, muito feio – e como que um Pai da Pátria, um Founding Father que nunca tivemos, trouxe um certo lustro ao matagal que era então o Brasil, ao criar a Academia Brasileira de Letras, durante tantos anos um farol civilizatório no Bananal. Cheio de defeitos, claro, mas se você se lembrar do que era o país, concordará comigo.


Lembrando que Heidegger dizia que a linguagem é a morada do ser, Machado com seus romances, contos e poemas, quase transformou o ser brasílico em um lar civilizado. Nada mais atual hoje, em que a suposta autenticidade é justificativa da falta de educação, o fervor ideológico substituiu a razão, e tudo isso está embalado em uma linguagem hobbesiana, com a tagarelice transformada em arma de destruição.


Domingo teremos eleições. Um bom domingo para você.



O romance Helena ainda é um dos meus prediletos de Machado de Assis. Cito Jorge Luiz Borges (Laberinto) de memória, e a memória sempre me falha. Faça um favor a si mesmo e procure o original Elogio de la Sombra. A epígrafe é também de Borges, do mesmo livro, em Fragmentos de um Evangelio Apocrifo. Lembrando que ele termina o seu Evangelho: Felices los amados y los amantes y los que pudem prescindir del amor. Felices los felices.


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