top of page

CENAS DE UMA DESPEDIDA

“Viva o amor”, dizia a pintura que ganhamos do irmão dela, e que agora estava encostada, desalinhada no chão, ainda sem local definido. E mais uma vez senti as horas me esmagando, nessa falta tão pesada, nesse pesar revoltante de não tê-la comigo.


Melissa Zamprônio narra uma despedida, ao som de Lost on You, de Laura Pergolizzi.

Melissa Zamprônio, nossa colaboradora, ganha a vida como advogada e funcionária pública, mas seu verdadeiro metier é escrever. Neste texto, ela narra um episódio de despedida, de uma maneira própria, altamente sensível e meticulosa. Eu, como um assumido voyeur da vida – e também porque eu sou editor desta baiúca – pedi a ela a trilha sonora do texto. Ela respondeu: Lost on You, de Laura Pergolizzi.


Lost on You, a trilha sonora das despedidas da geração Z.

Pela escolha musical, os leitores perceberão que Melissa Zamprônio é da Geração Z. Ou seja, é assustadoramente jovem.


Para benefício de nossos leitores que já andam confundindo urubu com papagaio, sugiro Sabor a mi, com Eydie Gorme e o Trio Los Panchos.



Para os mais sofisticados, Every time we say goodbye, com Ella Fitzgerald, de Cole Porter.



Pensando bem, ouça todos. E chore com Melissa e por Melissa, mas chore principalmente por todas as despedidas que vivemos. (Hatsuo Fukuda)


Cenas de uma despedida


Melissa Zamprônio


Dispersa - ou concentrada demais em algo banal - fui reconectada ao mundo pela sua mão em minhas costas. “Tá faz tempo aqui?”. Olhei, olhei. E olhei de novo. Talvez aquela troca de olhares contivesse mais significado que o restante da conversa, de tão fundo que me atingiu. Eu não sabia dizer se havia esperado meia hora, duas horas ou dez minutos, mas, simplesmente, deixei meu corpo existindo no meio da praça enquanto fitava uma planta aleatória. Não me preocupei se ela viria ou não.


Pensei: ‘não adianta morrer de ansiedade agora, depois da nossa história, já cheia de percalços, então seria mais um dia’, foi o que me ocorreu. E foi por isso a longa análise feita pelos meus olhos sobre ela: peito estufando, garganta seca - era nervoso, era pressa? -, no entanto, cabelos lindamente desajeitados e a maquiagem tradicional.


Pois bem. Não se acaba um relacionamento desses e se toca a vida normalmente. Aliás, era qualquer coisa longe do normal que eu estava vivendo naqueles últimos três meses. No começo, foram uns quinze dias terríveis, tive desde pesadelos até dor de barriga. Não foi fácil pegar todas as minhas coisas e enfiar no veículo da mudança, porque cada uma das caixas encerrava em si momentos tão importantes, lembranças que nem em outra vida eu haveria de experimentar. Contudo, foi curioso o fato de eu não ter me sentido arrasada por ir embora, por trocar de moradia e de paradeiro. A minha localização física já não mais me importava, porque de qualquer forma nos distanciamos ainda dormindo na mesma cama. O que eu não esperava, por outro lado, era ter de lidar com sintomas físicos da ausência dela, e confesso que tomei quase uma caixinha inteira de paracetamol, ficando amortecida por boas horas. Combinamos que eu chamaria a empresa para carregar tudo enquanto ela estivesse no trabalho - seria menos penoso e eu me sentiria mais à vontade com a situação.


Depois de tudo empilhado nos poucos cômodos da nova casa, finalmente me senti sozinha desde seis anos atrás. Era aquilo? Afastar-me da mulher que aprendi a sentir a presença em todos os momentos e agora prosseguir com a dureza da rotina foi tomando a minha sanidade, pouco a pouco. Foi costume, foi uma dependência saudável, foi divisão permanente de tarefas, tudo levado a cabo sem que qualquer das duas entendesse direito o motivo. Paralisei quando me vi separando as roupas sujas - brancas e coloridas -, porque a mim, às quartas e sábados cumpria levar o lixo para fora. Vê? Rotina.


Não tínhamos nos casado ainda, muito embora meus amigos de longa data e do trabalho perguntassem incessantemente: quando vocês vão trocar de sobrenome? combinam tanto misturados, assim, primeiro um e depois o outro e também em ordem invertida, juntar o meu Zampronio com o Nogueira dela. Apenas fomos vivendo sem colocar formalidades no caminho, como quando se começa a arrumar o quarto e se encontra mil objetos antigos, com os quais é costume perder horas.


E parei novamente ao imaginar se ela também sentiria esses vácuos até nas coisas simples. Pensei também em mandar uma mensagem explicando como desencaixar a tampa interna do forno sem fazer estrago, porque aquilo exigia um jeito específico; pensei em pedir ajuda para cuidar das plantinhas - quanto de água colocar? eu as ponho na direção do sol, na varanda, ou mais para dentro de casa?


Bem, tive de me reeducar em tudo, tirar o automático do controle e reassumir os afazeres, porque agora nada aconteceria se eu dormisse o domingo inteiro. Da mesma forma que não encontraria suas pernas se eu esticasse as minhas para o outro lado do sofá.


“Viva o amor”, dizia a pintura que ganhamos do irmão dela, e que agora estava encostada, desalinhada no chão, ainda sem local definido. E mais uma vez senti as horas me esmagando, nessa falta tão pesada, nesse pesar revoltante de não tê-la comigo.


Bem, eu já senti dores parecidas, mas em momentos totalmente diferentes, não numa vida adulta que pressupõe ordem e fluidez. Não numa vida tão complexa e cheia de cinzas. Eu não podia parar meus afazeres por causa de uma simples perda… Não, claro que não era uma perda pequena. É, eu ainda estou lúcida, consigo distribuir as esferas de metal na balança da existência. Era, evidentemente, algo bem mais importante do que qualquer responsabilidade comum. Eu poderia, sim, desviar um pouco as luzes do meu trabalho e dos meus afazeres e cuidados próprios para pensar além: precisava lapidar finamente minha paciência e minha esperança para tratar desse caso.


Virei a cabeça de leve para fugir do sol e me tornar eclipse nela, pois precisava enxergar bem todas as linhas daquele rosto, estava carente de segurar o tempo por uns instantes. E foi nesses momentos que relembrei muitas expressões, frases, lágrimas, silêncios e sonhos vindos daquela face. Fiquei meio perdida, tentei me recompor numa resposta que saiu mais ou menos assim, “cheguei às quatro, acho que não faz tanto tempo, né?”. É, não havia passado nem vinte minutos até ela se desvencilhar dos planos de aulas e vir me encontrar. Contou-me da recuperação do nosso término, mas não escondeu suas dificuldades nem as feridas, assim, pude ver toda a beleza da verdade, ali, à minha frente. Falou também que o irmão finalmente se ajeitou na Holanda, que a mãe estava já em casa, depois de muitas cirurgias nos olhos - agora enxergava bem e podia até chorar de felicidade.


Não havia mistério: precisávamos de uma conversa mais leve, sem sobressaltos; era importante guardar essa energia para quando realmente fosse necessária, porque eles viriam. A decisão, há cinco meses, foi acertada, disse ela, ou teríamos colapsado para qualquer lado, como estilhaços de uma louça jogada contra a parede. Permaneci muda, nenhuma palavra me ocorreu, embora tivesse afastado, de leve, os lábios e inspirado, ao que ela esperou uma resposta. Não veio. Era terrivelmente cedo, mas em menos de dez minutos de conversa minha espinha já gelara e senti a ponta da agulha da dor me espetar os nervos. Agora a realidade havia me acordado - ora, foi isso. Eu, inábil em deixar ir, tive de deixar ir, pois essas coisas não se escolhe: a vontade do outro é dente-de-leão levado pelo vento e resta apenas observar. O gesto dela em conversar, naquele sábado, tinha o fim de aliviar algum tipo de agonia em comum a nós duas, pensei. Não era, por certo, um recomeço imediato, e nem poderia - essas coisas levam mais tempo para serem consertadas do que levaram para se quebrarem. O óbvio.


“Não queria bobeira, sabe, é que realmente precisava desse tempo, eu… acho que coloquei a cabeça mais no lugar. Entende?” Comprimi a boca, quase num pesar, e desviei os olhos, porquanto, de novo, não sabia reagir. Acorda, isso está acontecendo, todas as vozes me gritavam na consciência. “Acho que entendo”, retruquei, tentando ser suave ao exprimir os sentimentos condensados em mim - mas os expressei de uma forma não muito boa.


Por desaforo, numa briga, depois da qual ela resolveu passar a noite fora, beijou a parede ao lado da porta de entrada. Não foi um desentendimento grave e eu não esperava encarar, por horas, a impressão bordô dos lábios dela, enquanto chorava alto madrugada adentro. Então, anos se passaram, mas não apagamos a tal marca, em consenso, como quem combina a posição de uma estátua no canto da sala. Acabou virando ponto turístico das amigas que por ali passaram, pois algumas, sem nada entender, autografaram com a boca a mesma pintura. Depois dessa última separação, fui em silêncio reiterar o ritual, com batom preto, mas relembrando o significado do gesto - o tipo de linguagem intraduzível, que só se pode sentir fundo no peito.


Reconstruindo o tempo que ficamos juntas, de fato, estava cheio de detalhes emblemáticos - pequenos toques, marcas, um baú trancado com as peças que só nós sabíamos usar. Ora isso se confundia em dolorosas lembranças, ora submergiam como parte de nossa identidade. Mas não seria então, justamente o que nos definiria? Ah, sim, não se trata de algo além de nós, mas apenas de uma relação bonita e com muitas nuanças.


Olhei as horas no relógio dela - tinha os braços dobrados em paralelo, frente ao abdômen, e que talvez ali expressasse um pouco de impaciência - “tempo, não é?”, respirei fundo e passei a mão no cabelo, na nuca, na bochecha esquerda. Evidente que se esgotara minha capacidade de conversar. Era por bem que a coisa parasse ali. Eu queria perguntar se ela havia apagado aquilo a que nos referíamos como ‘obra do Klimt’: os muitos beijos na parede branca, mas não era mais apropriado. Gentilmente propus que nos víssemos dali a alguns dias, porque precisava respeitar meu próprio ritmo; perguntei se ela se sentiria, com isso, incomodada. “Não, de jeito nenhum. Fique à vontade, está sendo duro para nós duas. Vá para sua casa”.



Combinado. E nos despedimos devagar, quando o sol já não mais atrapalhava a visão, num abraço muito reconfortante. Minha casa é aqui, no ombro dela, concluí atrás dos olhos, cá na escuridão dos meus pensamentos. Mas a única coisa que ressoava daquele encontro na minha memória auditiva era a expressão “sua casa”, porque era uma forma de ela delimitar, quem sabe, um espaço diferente para mim. E estava certa, é exatamente isso. Mas, não deixava de soar estranho aos meus ouvidos acostumados a atender por “nossa casa”.


Melissa Zamprônio narra uma despedida, ao som de Lost on You, de Laura Pergolizzi.

Melissa Zamprônio é uma escritora, e chora nas despedidas.

Comentários


bottom of page