Pastéis, camarões abraçadinhos, bolinhos de carne, cervejas e caipirinhas”
Imagem deMarcos Eduardo Ferreira Marcos EduardoporPixabay
Porque pastéis? Porque não sushis, sashimis, tempurás e coisas que tais? Meu avô costumava ir pessoalmente à Peixaria Oceania, ali na Carlos de Carvalho esquina com a Ermelino de Leão, escolher e limpar os peixes (era amigo do pessoal). Fazia ótimos sashimis. Mas nos anos 50 e mesmo nos anos 60 e 70, comidas japonesas e orientais em geral eram exóticas demais para os paladares locais. Portanto, se você tem uma família grande para alimentar, sirva frituras à freguesia. Pastéis.
E o nome? Sobre isso, uma lembrança se enrosca na memória: minha mãe contou-me que durante a guerra (a 2.ª), andava pelas ruas e pessoas atiravam pedras nela. Uma foto em preto-e-branco, tirada em estúdio, aparece nítida: uma bela jovem japonesa, saindo da adolescência, um pouco tímida, virginal, inocente, me faz pensar no grau de intolerância e sordidez que faz com que desconhecidos joguem pedras na rua em uma adolescente de 14 anos de idade, idade que ela teria em 1941, ano em que Pearl Harbour foi atacada. Suponho então que o motivo do nome tenha sido o mesmo que fez com que o Clube Alemão passasse a se chamar Concórdia. Assim, Pastelaria Brasileira.
Em um esforço de memória, meu tio Kehitiro, recentemente falecido, contou-nos que antes eles estavam estabelecidos na Rua Marechal Floriano, e se mudaram no ano em que ele passou na Faculdade de Odontologia. Assim, foi em 1957 que se estabeleceram onde ainda se encontra, na Rua Cândido Lopes, 156, em frente à Biblioteca Pública. Era uma simples porta de aço, com um balcão separando a freguesia da família trabalhadora. Na entrada, uma estufa de vidro exibia os petiscos para os passantes. Atrás do balcão, uma panela onde se fritavam os pastéis. Nos fundos, um biombo de madeira pintado de verde e já escurecido pela oleosidade, separava um espaço exíguo para a cozinha.Havia duas mesinhas encostadas na parede para a freguesia, que logo foram aposentadas por falta de espaço. Servia-se um prato feito na hora do almoço. O negócio prosperou, minha avó cansada parou de trabalhar, meu tio se formou, e meus pais foram chamados de Catanduva (SP), onde moravam, para ajudar. E lá chegamos, numa tarde de julho de 1961, aboletados em um caminhão com nossas poucas tralhas.
Quem não comunica se trumbica, dizia um sábio já esquecido. E minha mãe passou a ser chamada, para facilitar a vida da freguesia, de Dona Rosa; meu pai, Seo Mário (aliás, codinome herdado do meu avô). Kazuko e Kenkichi Fukuda, seus nomes verdadeiros, ficaram esquecidos nas certidões de nascimento e casamento. Funcionava de manhã, de tarde e à noite. Era um bar, não uma pastelaria, embora pastéis fossem o ponto forte. Serviam-se também pescadinhas fritas inteiras, camarões abraçadinhos, camarões inteiros fritos com casca, bolinhos de carne. Estes eram temperados somente com cebola picada, alho, cheiro verde, sal, pimenta do reino. Para dar liga, pão amanhecido umedecido. Depois de formatado, era embranquecido com farinha de trigo. Era delicioso. Delicioso também era um pastelzinho à milanesa, com recheio de palmito e camarão. O mesmo recheio era utilizado no pastel de palmito, que, afinal, não era só de palmito. O molho vinagrete, em que pedacinhos de tomate picado e cebola bóiam tristes em uma agüinha, por artes de minha mãe transformou-se em um molho suculento (feito só com tomates super maduros), levemente apimentado com pimenta vermelha passada no liquidificador. Naqueles tempos pré-hamburguer, as pessoas pediam para comer o bolinho de carne envolvido em pão d’água. Molho à vontade.
Preciso abrir um parêntese para falar sobre a habilidade culinária de minha mãe. Era uma mulher prática (alimentar cinco filhos exige praticidade) e não tinha tempo para firulas (ou a experiência dispensava as dúvidas); assim, lembro-me de sua incrível capacidade de misturar ingredientes aparentemente de forma aleatória na panela e obter resultados deliciosos. Hoje, com a arte culinária reconhecida entre os moderninhos, ela seria provavelmente uma grande chef.
Os pastéis, para alegria dos cardiologistas, eram fritos em banha de porco. Meu pai jogava pacotes de banha ainda embalados em papel manteiga no panelão, e à medida que a banha derretia, as embalagens fumegantes eram retiradas.
No final da tarde, os rapazes que estudavam medicina apareciam para jantar no DANC, Diretório Acadêmico Nilo Cairo. Eles se juntavam na porta do bar, tomando caipirinhas e cervejas, o jantar deixado para depois, esquecido entre um camarão e outro. Cerveja: Brahma ou Antártica. Durante o dia, as moças das Lojas Americanas compareciam para comer um pastel e tomar guaraná também da Brahma ou da Antártica.
Em determinado momento a racionalidade econômica falou mais alto. O estoque de cigarros – indispensável para os bêbados de sempre que lá compareciam – foram retirados da prateleira. Era um imenso capital empatado permanentemente, lucro ínfimo. As noites foram reduzidas e afinal, o expediente passou a ser encerrado logo após o anoitecer. Adeus, caipirinhas, martelinhos de cachaça com vermute, conhaque Dreher, cachaça Pitu ou Trevisan. Cervejas nunca mais.Os bêbados seguiriam em sua busca pelo botequim perfeito. Naturalmente, pesou também a jornada extenuante de 14, 15 horas por dia.
A história continua; mas já é outra história.
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