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CÁCERES

Formações rochosas de Mato Grosso inspiram viajantes de todo o Brasil. E escritores, como Miriam Giro
As formações rochosas de Mato Grosso inspiram visitantes de todo o Brasil

Um conto de ficção científica de Miriam Giro, inspirado pelas formações rochosas na região de Cáceres, no Mato Grosso.


CÁCERES


Para Orleu

 

Quando me mandaram voltar ao terceiro planeta daquele sistema solar do canto da Via Láctea, não fiquei muito contente.

 

Nossa primeira expedição não havia sido lá um sucesso muito grande. Tivemos muito trabalho para fazermos a sinalização para descida da nave mãe por que naquele terceiro planeta a matéria orgânica e a inorgânica estavam sempre misturadas. Nunca nos agradou revolvermos matéria onde sabíamos que poderia existir vida consciente.

 

Mas, como tive participação no erro que agora deveria ser corrigido, peguei meu boné, ou melhor, meu transportador, e lá fui eu. Mas, vou começar do início pra ver se dá pra entender alguma coisa.

 

Nossa primeira expedição ao terceiro planeta ocorreu há cerca de 10 anos-G atrás. Havíamos captado deslocamento de grandes massas de materiais orgânicos lá e resolvêramos descobrir do que se tratava. A viagem demorou 1,2 anos-G e devo confessar que estávamos todos um tanto entediados quando lá chegamos. Decidimos pousar na faixa central do planeta, onde sua estrela se fazia sentir mais. Acho que todos sabem da paixão que nós, proteínos, temos pelo calor.

 

Escolhemos um vale onde, com certeza, havia existido um largo e fundo rio para pousarmos.

 

Tarina e eu fomos incumbidos de preparar o local de descida da nave mãe. Estávamos agradavelmente surpresos com a atmosfera e a temperatura daquele terceiro planeta, que pareciam ter sido feitas sob encomenda para nós, apesar da gravidade ser um tanto forte demais.

 

Afora o fato de removermos matéria orgânica, que perderam a forma que tinham, involuindo um pouco em nossa escala, posso afirmar que o trabalho foi leve e prazeroso. Mesmo por que, Tarina era muito espirituosa e ficava o tempo inteiro tecendo conjecturas absurdas sobre o terceiro planeta:

 

- Acho que este mundo vai desenvolver vida inteligente muito antes do que presumimos.

 

- Tenho certeza que vamos voltar aqui. E este lugar estará irreconhecível.

 

E por aí adiante…

 

As vibrações que emanavam de Tarina, de puro bom humor, contagiou-me tanto que acabei esquecendo meu transformador de substâncias sob um amontoado de matéria que serviria de baliza no pouso de nossa nave mãe. Infelizamente, tal fato só foi constatado em nosso regresso, há 4 anos-G atrás.

 

Nossa permanência naquele terceiro planeta foi de 1 ano-G e ensinou-nos muito sobre a formação de um corpo celeste, em dadas condições. Notamos que as acomodações de matéria aconteciam de forma muito acelerada e cogitamos a hipótese a estarmos interferindo no desenvolvimento das espécies que lá viviam.

 

Aproveito para falar um pouco dessas espécies. Eram três, basicamente: as que viviam no elemento gasoso, as do elemento líquido e as do sólido. Algo que nos perturbou muito foi a falta de atividade em níveis mais sutis de vibração e a pouca interação entre as diversas faixas estáveis de matéria do planeta. As espécies do elemento gasoso eram muito graciosas e, eventualmente, agressivas. As do sólido eram desajeitadas, hostis e medrosas – nunca conseguimos nos aproximar fisicamente delas. As do elemento líquido eram de uma perfeição que nos encantava. Segundo Turib, dali sairia a espécie vencedora do planeta, numa linha de evolução muito semelhante à nossa, em Protei.

 

Com a aproximação da hora de nossa partida dali, Tarina começou a ficar mal humorada e a passar horas contemplando os balizadores de descida de nossa nave mãe. O comandante incumbiu-me de entrar em contato com ela e tentar descobrir o que acontecia.

 

Encontrei-a distante de nossa base, na hora em que a estrela do planeta caía no horizonte e seu satélite, de uma luz graciosa, bem diferente da fonte que lhe dava brilho, ascendia do lado oposto. Nossa comunicação pareceu-me, na ocasião, de uma ilogicidade enorme. Hoje, após ter estado lá novamente, sei que Tarina estava tendo uma premonição fantástica do que iria acontecer ali. Dizia ela então:

 

- Tiepo, nós estamos agindo erradamente. Este planeta está evoluindo num ritmo desconhecido para nós e estamos introduzindo alterações nessa evolução natural, as quais não fazemos ideia que consequências terão.

 

- Você notou nossas balizas? Pense: se a forma de vida que se tornar dominante aqui tiver pequena massa – e, com esta gravidade enorme, é o mais provável que aconteça, nossas balizas tornar-se-ão acidentes geográficos, montanhas que obedecerão uma precisa geometria, pouco natural. No dia em que descobrirem que estivemos aqui e alteramos a matéria disponível, eles poderão não gostar. Quando constatamos que o ritmo de evolução deste mundo é mais acelerado do que todos os outros que conhecemos, deveríamos ter ido embora.

 

- Alguma espécie alcançará a racionalidade antes de desaparecerem as marcas que estamos deixando aqui. O planeta, seu satélite, sua estrela… tudo isto gira numa velocidade desconcertante para nós. O tempo aqui é mais “rápido”, se é que posso falar assim.

 

- E, tem mais. Quem vai dominar aqui serão as espécies que vivem no elemento sólido. E você já notou quão hostis e desconfiados são os integrantes dessa espécie.

 

- Acho que fizemos besteira e que, agora, não dá mais pra consertarmos. É melhor irmos logo.

 

Voltamos juntos para a nave mãe. Eu não conseguia captar as vibrações de Tarina, sentia que ela se fechava a mim e só conseguia perceber, com muita concentração, sua angústia.

 

Já me culpei mil vezes por não ter transmitido minha preocupação aos outros integrantes de nossa expedição. Além de gostar muito de Tarina, julgava que seu senso crítico fosse maior que seu sentimento de culpa. Também desconhecia a antiga tradição de sacrifício dos primórdios de nossa espécie. E Tarina tinha muita capacidade de transmissão à distância, pois foi só quando rompemos a atmosfera do planeta que sentimos sua ausência. Ela conseguiu nos dar a sensação, durante toda a nossa ascensão, que estava em sua cabine.

 

Mas, acho que já me excedi no trato deste assunto, que ademais é doloroso para todos nós.

 

Tarina tinha razão. O racional dominante naquele terceiro planeta é um ser do elemento sólido. Deu-se o nome de Homem e continua hostil e desconfiado, inclusive de indivíduo para indivíduo.

 

Não consegui recuperar o transformador de substância. Um Homem o encontrou e, apesar de não ter plena consciência disto, vem utilizando-o para obter uma substância que chama Calcário, que retira da região onde estivemos e a envia para diversos outros pontos do planeta afim de misturá-la ao solo para produção de espécies vegetais que servem de alimento à espécie Homem.

 

O local onde estivemos é habitado por muitos Homens atualmente. Deram-lhe o nome de Cáceres, palavra que, na linguagem do Homem da região, é muito parecida  com a palavra utilizada para designar prisão, jaula, local de cativeiro. Isto me assustou muito por que, vistas do alto, nossas balizas de descida e estacionamento da nave mãe assemelham-se a grades, que cercam uma vasta região daquele mundo.

 

Os Homens não têm uma linguagem única, cada região tem um jeito próprio de se comunicar, em linguagem articulada através de vibrações sonoras. Os Homens não transmitem entre si, até onde pude constatar, apesar de tudo levar a crer que eles tenham capacidade para tanto.

 

Quando já estava com meu transportador programado para partida, descobri que existe uma espécie aquática que transmite entre si. O Homem a denomina genericamente de Peixe e, particularmente, de Piraputanga. Ainda tentei entrar em contato com tal espécie, mas encontrei resistência e um sentimento aterrador de angústia e luta por sobrevivência.


Piraputanga, um peixe encontrado na região de Cáceres, no Mato Grosso, que é um indicador de águas limpas.
Piraputanga, um peixe encontrado na região de Cáceres, no Mato Grosso, que é um indicador de águas limpas.

 

Sei que julgarão prematura minha afirmação de que aquela espécie é Tarina, ou o que restou dela. Mas tive plena certeza quando vi, já em andamento minha ascensão, uma Piraputanga sendo sacrificada por um Homem: o Peixe era vermelho por dentro, a mesma vibração que, sabemos todos, sempre foi a utilizada por Tarina.

 

Relatório de Tiepo

Arquivado no almoxarifado junto à ficha do Transformador de Substância extraviado


Miriam Giro viaja pelos campos e montanhas da vida. E escreve contos.

Miriam Giro viaja pelos campos e montanhas da vida. E escreve contos.

1 comentário


Demetria Filippidis
08 de out.

Sensacional essa viagem, que é marcada por intercessão de seres, de diferentes dimensões. Complexidades que me remete a impressão que tudo se interliga, casualmente ou não, as relações de vida e evolução são imensuráveis, a mente humana é parte de uma teia universal, as vezes conseguimos firmar em algum ponto de vista, no topo da montanha observamos passado, presente e futuro. Nada é definitivo nem eterno, navegamos nas miríade dos vestígios aleatórios de muitas causalidade. Que tornamos absolutas neste piscar de olhos de uma vida inteira. Ser ou não ser .....

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