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Foto do escritorHatsuo Fukuda

LET IT BE


Jogando e deixando jogar.


Imagem de China.org.cn



Campeonato Mundial de Tênis de Mesa em Nagóia, Japão, 1971. Glenn, o jovenzinho americano riponga de cabelos compridos, perdeu o ônibus para o hotel, e lhe deram carona no ônibus da delegação chinesa. Os chineses o receberam em silêncio, mas um dos atletas, Zhuang – a estrela do time -, o cumprimentou e lhe deu de presente uma pintura em seda. Em retribuição, no dia seguinte Glenn deu a Zhuang uma camiseta com os dizeres: Let It Be. Os repórteres estavam presentes, o encontro foi documentado e a foto dos jovens sorridentes correu o mundo.


Mao Zedong, o todo-poderoso Presidente chinês, ficou sabendo do incidente. Acordou no meio da noite, e pediu para ligarem ao ministro das Relações Exteriores. A enfermeira, preocupada, perguntou se isso não seria um efeito dos remédios que tomava para dormir. Ele retrucou: “Sim, é verdade, mas ligue já, antes que seja tarde demais.” E assim os americanos foram convidados para visitarem a China para torneios amistosos, pondo fim a mais de vinte anos de isolamento e confronto da China com o resto do mundo. Este episódio ficou conhecido como a Diplomacia do Pingue-Pongue.


Os dois garotos, sem saber, guiados pelo instinto natural da juventude, levaram à opinião pública uma aproximação que já estava sendo pensada há anos pelos estadistas. O jovem hippie americano com seus cabelos longos levara à China a revolução que os jovens do mundo já cantavam:


And when the brokenhearted people

Living in the world agree

There will be an answer

Let it be


Mao Zedong, dois anos antes, havia tirado do ostracismo quatro marechais do Exército Popular de Libertação – caídos em desgraça pela Revolução Cultural, estavam em trabalhos forçados – e pedido estudos sobre como tirar a China da situação em que se encontrava, com a então poderosa União Soviética ao norte, com um milhão de soldados na fronteira, e uma provável guerra à frente. Os marechais haviam tirado da algibeira um clássico literário chinês, o Romance dos Três Reinos, e dito: “Para combater o inimigo próximo, necessário se aliar com o inimigo distante”. Ou seja, para enfrentar a vizinha União Soviética, era necessário melhorar as relações com os Estados Unidos. Uma heresia impensável aos ortodoxos comunistas chineses de então, que ainda se ressentiam da Revolução Cultural e a luta dos Guardas Vermelhos contra a tradição (o Romance dos Três Reinos tinha sido proscrito, junto com o pensamento de Confúcio, que guiou a burocracia chinesa por dois mil anos).


Imagem e AF8/Getty Images


De outro lado, Nixon, o guerreiro frio, o mais notório anticomunista da América, já tinha chegado à conclusão semelhante. Era necessário tirar a China do isolamento em que vivia, e fazê-la participar dos jogos da diplomacia internacional. O mundo, e os Estados Unidos em particular, precisavam romper a bipolaridade EUA-URSS e colocar um terceiro no jogo.


Tudo isso estava acontecendo por meio de mensagens sutis enviadas por diversos canais diplomáticos em todo o mundo. Henry Kissinger, o chefe do Conselho Nacional de Segurança de Nixon, orquestrava a aproximação pelo lado americano. Zhou Enlai, o Chanceler, pelo lado chinês, acompanhado de perto por Mao. Neste contexto, a troca de presentes entre Glenn e Zhuan se revelou providencial e foi imediatamente aproveitada por ambas as partes, que enfrentavam o problema de como convencer a opinião pública dos países, envenenada por vinte anos de propaganda.


Um ano depois, Nixon foi à China.

O aperto de mãos entre Mao e Nixon selou a amizade entre os povos. A Ásia, conflagrada pela guerra fria, preparou-se para cinquenta anos de paz, que perdura até hoje. A prosperidade viria, finalmente, com a ascensão de Deng Hsiao Ping ao poder, alguns anos depois, e o retorno do capitalismo. A China tornou-se o motor da expansão mundial, beneficiando a todos, Brasil inclusive. Um país pobre e agrário em cinquenta anos tornou-se a maior potência econômica do mundo, superando a economia americana. Henry Kissinger lembrou que em vinte séculos, a China foi a maior potência econômica do mundo durante dezoito. Eles apenas retomaram a posição que sempre foi deles.

Do lado americano, a aproximação com a China permitiu aos Estados Unidos se concentrarem na disputa com a União Soviética, resultando na queda do Muro de Berlim, e, em seguida, a debacle do regime soviético. O Império Americano tornou-se hegemônico, como fruto da sabedoria diplomática de Nixon e Kissinger.


Deixa estar. Os Beatles sabiam das coisas.


Zhuang Zedong, o tenista chinês, correu um sério risco ao se aproximar de Glenn Cowan, o jovem americano. Por muito menos, naqueles anos – a Revolução Cultural estava em seus estertores, mas ainda era uma realidade recente – milhões de pessoas foram mortas ou enviadas para trabalhos forçados. Tudo indica que o gesto amistoso foi espontâneo e fruto da camaradagem de atletas. Glenn Cowan era o mais jovem atleta da equipe. Estudava na UCLA, na época. Seu nome foi inscrito no California Table Tennis Hall of Fame. Não tinha sido a primeira vez que o livro The Romance of Three Kingdons, de Luo Guangzhong, foi utilizado na elaboração da política externa chinesa (após a Revolução). Sobre a aproximação China-USA: On China, o livro de Henry Kissinger. Ambos os livros disponíveis na Amazon Books.

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