Paraná: terra de nem todas as gentes
- CELSO NASCIMENTO

- há 1 dia
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“Paraná, terra de todas as gentes” — proclamava o slogan ufanista do Estado que se orgulhava de ter crescido graças aos italianos, alemães, poloneses, japoneses e ucranianos. Vieram fugindo da fome, da guerra, da desesperança — e também atraídos por promessas de um Éden tropical onde jorrariam mel, leite e, de brinde, jabuticabas.

“Paraná, terra de todas as gentes” — proclamava o slogan ufanista do Estado que se orgulhava de ter crescido graças aos italianos, alemães, poloneses, japoneses e ucranianos que, desde o século XIX, cruzaram oceanos em busca de uma vida melhor. Vieram fugindo da fome, da guerra, da desesperança — e também atraídos por promessas de um Éden tropical onde jorrariam mel, leite e, de brinde, jabuticabas.

Mas a história que o marketing oficial nunca contou é que a imigração serviu, na prática, a dois propósitos bem menos poéticos do imperador Pedro II e dos primeiros governos republicanos: substituir a mão de obra escravizada, que se extinguia lentamente, e “branquear” a população brasileira, em nome de um ideal eugenista que hoje causa vergonha. O Sul, claro, era o cenário ideal para essa engenharia social.
Nem todas as “gentes”, porém, eram bem-vindas. Algumas eram abertamente indesejadas — ainda que, em certos casos, viessem acompanhadas de generosas compensações financeiras. Foi o que ocorreu na curiosa e quase esquecida história de quando se quis mandar curdos para o Paraná – cerca de 30 mil famílias ou 100 mil pessoas.
Quando o deserto encontrou o café
Tudo começou bem longe daqui, nas areias da antiga Mesopotâmia. Após a Primeira Guerra Mundial, o território do atual Iraque caiu sob tutela britânica. Logo se descobriu que sob aquelas dunas dormia uma fortuna em petróleo — justo quando o mundo começava a mover-se à base de combustível fóssil. A exploração era promissora, mas havia um “pequeno” problema: os curdos, povo orgulhoso e insubmisso, sabotavam poços, incendiavam oleodutos e atacavam comboios. Rebeldes, insurgentes, terroristas — assim os rotulavam os ingleses, impacientes com quem ousava desafiar o império “onde o Sol nunca se punha”.
A solução imaginada foi tão cínica quanto criativa: deportar os curdos para o outro lado do planeta. E o Brasil, sempre pronto a agradar os poderosos, poderia servir de refúgio conveniente.

O destino escolhido? O Paraná — terra fértil, ainda coberta por matas de araucária, e onde a empresa Paraná Plantation havia comprado, na década de 1920, vastas extensões do chamado Norte Novo. A crise de 1929, com o colapso do preço do café, deixara o negócio em apuros e o estoque de terras à venda. Por que não matar dois coelhos com uma cajadada só — salvar o império britânico e liquidar os terrenos encalhados?

O plano era elegante: a Inglaterra pagaria generosamente ao governo brasileiro para acolher os cem mil curdos, que aqui plantariam algodão destinado à indústria têxtil britânica — afetada pela queda da produção na Índia e no Egito, também colônias da Coroa. A Liga das Nações, precursora da ONU, chegou a aprovar a ideia.
E o próprio Príncipe de Gales, o célebre Edward — o mesmo que mais tarde abdicaria do trono por amor à divorciada americana Wallis Simpson — veio pessoalmente ao Brasil em 1931 para avaliar o terreno.

Oficialmente, dizia-se que o príncipe viajara de trem a Cornélio Procópio apenas para “caçar animais exóticos”. Do seu séquito de 40 pessoas entre mordomos e serviçais, encontrava-se também seu irmão George, o futuro rei que o substituiria no trono a partir da abdicação. Na prática, o safari tropical não passou de pretexto. O troféu da viagem foi uma indefesa anta, previamente amarrada a uma árvore — cena patética que sintetiza o exotismo colonial do episódio.
O escândalo do “Panamá no Paraná”
O segredo durou pouco. Quando o plano veio à tona, a reação foi explosiva. A terra “de todas as gentes” mostrou-se, de repente, de quase nenhuma. Jornais e rádios se insurgiram com veemência. A poderosa PRB-2 liderou a campanha, amplificada por manchetes indignadas da Gazeta do Povo, do Diário da Tarde e de O Dia. Falava-se em um “Panamá no Paraná” — panamá expressão então sinônima de maracutaia e corrupção.

Os editoriais cobravam do interventor Mário Tourinho e dos deputados paranaenses uma resposta à “ameaça estrangeira”. O silêncio político só reforçava o escândalo. A reação movida pela imprensa e pela opinião pública fez Getúlio Vargas, pragmático como sempre, preferir encerrar o assunto. O “negócio” foi cancelado, os curdos ficaram onde estavam e a aventura imperial se desfez como fumaça de charuto inglês.
O tempo passa, os curdos resistem
Noventa anos depois, o Paraná já não tem imprensa tão combativa — mas seus políticos continuam espantosamente parecidos como os de antes. Os curdos, por sua vez, seguem sem pátria: cerca de 30 milhões de pessoas espalhadas entre Turquia, Síria, Irã e Iraque, sustentando uma das mais longas lutas por um Estado próprio na história moderna.
E, para não dizer que o preconceito ficou no passado, basta lembrar que naquela mesma década de 1930 a imprensa paranaense também se opôs à imigração judaica. Os curdos eram “guerreiros e violentos demais”, “impróprios para a lavoura” e também perigosos à “índole pacífica” local. Eram tempos de antissemitismo em alta, o que incluiu os judeus entre os indesejados – movimento embalado pelo fascismo de Plínio Salgado e seu integralismo verde-oliva — o mesmo Plínio que, sintomática e ironicamente, viria a ser o candidato mais votado em Curitiba nas eleições presidenciais de 1955.
Mas essa já é outra história.
Por ora, basta lembrar que, entre tantas “gentes”, nem todas couberam no paraíso inventado pelo Paraná — esse Estado que, à sua maneira, sempre soube acolher... e também rejeitar.
Celso Nascimento

Celso Nascimento é um foca recém-saído da Faculdade, e pelo trabalho ganha uma gasosa e um chineque no Bar do Luiz, na esquina da Praça Carlos Gomes. Fotografado por Reinaldo Guidolin, da Gazeta do Povo.









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