Nosso melhor cronista continua caminhando pela cidade, partilhando seu olhar sensível com os leitores.
Foto de Hatsuo Fukuda
Subo devagar a ladeira da Rua Ébano Pereira, em direção ao Alto São Francisco. Lentamente, como um velho encarquilhado, acometido pela gripe. Aproveito para roer um ossinho que achei no caminho e peguei, antes que um cachorro mais faminto que eu o fizesse. O vira-lata me olhou um tanto desconsolado, mas deixou passar. Está acostumado a conviver com estranhos famintos. Devidamente roído, pensei em quebrar o osso para aproveitar o tutano – estou precisando de proteínas – mas não vi nenhuma pedra e desisti. Deixei o ossinho em cima da lixeira pensando no próximo caminhante faminto que poderia aproveitar o tutano, e segui em frente.
No cruzamento com a Rua Augusto Stelfeld, o movimento de carros me fez parar. Aproveitei para conversar com amigos que estavam por ali, descansando da labuta diária, esperando a próxima onda de boa sorte. Está difícil, irmão. O craque não ajuda. Se colocar no currículo não vão te contratar.
Chego finalmente ao meu destino, a Praça João Cândido. Sento no Café do Belvedere, com medo de ser expulso. Afinal, deixei meu fraque e cartola em casa, e estou vestido como sempre, ou seja, quase molambento.
Normalmente prefiro a companhia dos cachorros de rua, que são um pouco mais educados que os humanos – desde que não roube sua comida, tudo bem – mas hoje pensei em matar a saudade da humanidade e cometer um daqueles atos que me reconciliam com a vida: tomar café na praça, olhar a paisagem e ler versos de Fernando Pessoa.
Sol nulo dos dias vãos,
Aquece ao menos as mãos
A quem não aqueces na alma.
O gerente, simpático, me trouxe um café na mesinha de fora. Abro o meu fiel companheiro, parceiro das horas boas e más. Um verso aqui, outro ali, a lembrança de dias felizes, e sinto uma vontade irresistível de fumar um cigarro (aquele que vendem em bancas, em maços de 20, não o outro). A ansiedade passa. Vou continuar saudável. Não vou morrer de enfisema.
Uma mãe empurra o carrinho de bebê. Um belo dia para passear as criancinhas. Um casal conversa animado, sentado em um dos bancos. Como moldura, as ruínas daquilo que quase foi. A prefeitura plantou flores, transformando em beleza aquilo que foi durante anos, banheiro para os sem-teto. Ao fundo, o anfiteatro.
Uma brisa anuncia a chegada da primavera. Vou até o anfiteatro e sento no alto da arquibancada. Um sol tímido, mas agradável. Tento me lembrar dos versos de Antonio Machado e eles surgem, claudicantes, a memória em modo pause:
Caminante, son tus huellas
El camino, y nada más;
Caminante, no hay camino,
Se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
Y al volver la vista atrás,
Se ve la senda que nunca
Se ha de volver a pisar.
Belo lugar para sentir saudades de mim.
O Belvedere, na Praça João Cândido, era quase uma ruína tomada por lixo e excrementos. Era um abrigo para sem-teto. Alguns abnegados, liderados pela professora Chloris Justen, da Academia Paranaense de Letras, e pelo senador Flávio Arns, se reuniram e começaram um movimento para a retomada da área. O IPPUC fez um belo projeto de restauração do prédio e do entorno. O Senac montou um café no térreo, a Academia Paranaense ficou no alto, como convém aos sábios, e Curitiba ganhou um belo ponto de encontro. A praça voltou a ser do povo.
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