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VIAGENS DE CAIO: DE CURITIBA A FRANKFURT, PASSANDO POR ALMIRANTE TAMANDARÉ

Caio Brandão viaja pelos mares da vida, de Curitiba a Frankfurt, passando por Almirante Tamandaré.
Caio Brandão viaja em grande estilo, em uma estilosa Mercedes 51, de Frankfurt a Curitiba, passando por Almirante Tamandaré. Saiam de baixo.


VIAGENS DE CAIO: DE CURITIBA A FRANKFURT, PASSANDO POR ALMIRANTE TAMANDARÉ


Caio Brandão


Sou colecionador de pequenas coleções, aquelas triviais, que dão lugar umas às outras e, na alternância, me refinei em uísque escocês e com muito gosto. Passei, educado, pela cachaça e acolho muitas garrafas, tantos de um, quanto de outra, o uísque e a cachaça são meus protegidos, mas, também, socorro, vez por outra, algumas ampolas de vinho. Colecionei armas de fogo, uns poucos carros antigos, peças artesanais chinesas, esculpidas no marfim, e colecionei desafetos. Criei cães de raça, adotei araras, gatos e tigres, mas não colecionei dívidas, e sequer moedas de ouro. Tenho filhos, em dois casamentos, mas não colecionei amores, e nem dores, aconteceram. Amigos, não colecionei, mas conquistei alguns; raros, sim, mas devotados. Não colecionei livros, infelizmente, mas colecionei derrotas mais do que vitórias, e aprendi a sofrer sofrendo, e depois não sofri mais, que chato, porque isso comprometeu a minha capacidade de aprender.


Caio levou sua cadela rotweiler, Xuxa, para Frankfurt.
Não é a Xuxa, mas poderia ser.

No aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, embarcava de volta ao Brasil, com Xuxa, cadela da raça Rottweiler, que levei a Stammhein, na Floresta Negra, para acasalamento. Os cães nos permitem esse mimo, porque através do pedigree o tutor escolhe o padreador ou a matriz, mediante análise genética dos animais. Com filhos e filhas o pai acompanha namoro, noivado e comparece, sonâmbulo, à cerimônia na igreja, sem saber, sequer, o número da identidade das novidades e, quiçá, os seus nomes completos. E, infeliz do genitor que levantar questionamentos considerados indevidos.


Nevava, era noite, o aeroporto estava tumultuado e me dei por feliz, quando embarquei no Boeing 747, da Lufthansa. Na poltrona me recostei, como sobrevivente, por não falar inglês e tampouco o idioma alemão, do qual só me ocorria uma palavra: bundes, que soava familiar, e significa federal. Entretanto, nem tudo eram flores. O Comandante emitiu alerta pelo sistema sonoro, e de imediato as comissárias evacuaram a aeronave. A denúncia de bomba, coisa comum na Alemanha, soou aos meus ouvidos como ácido sulfúrico.


Na pista, foram as malas dispostas em paralelo e os passageiros convocados, um a um, para identificar as suas, que seriam restituídas ao porão da aeronave, vez ultrapassada a ameaça terrorista. Encontrei a bagagem, mas não a caixa de transporte da Xuxa, a cadela Rottweiler. Um desastre. Eu falava “my dog”, mas a palavra S U M I U , em inglês, me faltava. O vocábulo “disappeared” era o curinga do momento, cuja ausência me carimbou como o débil do voo, para quem a aeromoça olhava condoída.


Um policial, do tipo “poseur”, chamado a ajudar, se apresentou educado e prontamente. Fora de controle e sentado na pista, falando embolado em portunhol e gesticulando em dó maior, a minha figura era sofrível. Naquele triângulo se inseriam o policial, a comissária da aeronave, e o profundo remorso que me possuía, por não dominar o idioma inglês, língua universal. Mas, como Deus ajuda os inocentes, o policial, fardado, que no peito ostentava várias insígnias, tinha ascendência latina e “hablava” o castelhano com desenvoltura. A caixa foi encontrada, Xuxa embarcou sob aplausos dos passageiros impacientes, para alívio do comandante, sendo festejada através das janelas do avião. No Brasil, pariu dez filhotes. Um deles recebeu o nome de DISAPPEARED , e outro de DÉBIL, um sucesso, a viagem.

 

 

Mercedes 51 como a do Caio Brandão
Mercedes51, que leva Caio aos lugares mais inusitados.

Saímos de Curitiba bem cedo, de madrugada. Viajávamos num Mercedes Benz, fabricado em 1951, provido de enorme moldura frontal no radiador, carro muito charmoso. Fora reformado e se apresentava conservado, reluzente e quase novo. O modelo, parecido com o Ford do ano 29, tinha para-lamas enormes, que também serviam de estribos para motorista e passageiros. O carro recebeu alguns melhoramentos em São Paulo, sendo o trabalho finalizado em Curitiba, em oficina de tradição na reforma de antigos e renomada pela sua acuidade em exaurir o humor dos clientes, mormente por ela levados à beira da loucura.


A viagem transcorria lenta, face à densidade da neblina e mediante os cuidados devidos no tocante ao escorregadio da pista. A descida da serra, de Curitiba para Almirante Tamandaré, sempre perigosa e de intenso tráfego de caminhões, exigia atenção redobrada. Gentil ressonava, permitindo solavancos na distância entre o queixo e o pescoço. Eu falava sozinho, sem interlocução, enquanto o Gentil dormitava. Mas, estava de bom tamanho, porque era minha a escolha do tema, e o mesmo se restringia à neblina, que piorava em maturação e sinalizava perigo constante. Quanto mais dela reclamava, mais intensa a névoa se tornava. O carro, pela idade, não tinha muitos recursos e, com o para-brisa embaçado, o elegante e aplaudido Mercedes seguia viagem guiado mais pela intuição, do que pela direção.


Falando sozinho reclamei da oficina, porque o volante apresentava esterço muito curto, prejudicando a velocidade nas curvas acentuadas. As portas não fechavam corretas, provocando ruído e vibração excessivos, além da entrada de água da chuva, cúmplice da neblina, que encharcava o assento do motorista. Não gostei do freio, me parecia estranho, o pedal avançava afoito, em direção ao assoalho, e a sapata de borracha, que o calçava, estava solta e forçava contato direto e escorregadio com o metal.


Contudo, estava feliz. Dirigia, alegre, o sonho do Mercedes antigo, charmoso, de época, cuja idade se avizinhava à minha. Gentil fizera diagnósticos sombrios sobre a viagem, mas se permitiu dormir, confiante não no carro, mas no motorista. Entre as suas pernas, apertado pelos joelhos, um guarda-chuva e, ao lado do banco, pacote de sanduiche, do tipo matula dos tempos de escola primária. Aquilo me soou esquisito, porque não era usual da parte dele. Parecia que o amigo estava se protegendo de imprevistos.


Súbito, mediante aquaplanagem e um rápido descontrole na condução, Gentil acordou, em sobressalto. Reclamei de pronto da neblina, que me cegava a ponto de esconder, quase completamente, a estrada traiçoeira e escorregadia. Gentil, do alto do seu enorme nariz e com os olhos arregalados, gritou:


Encosta!!! Encosta!!! Salta fora!!! O carro está pegando fogo!!!


Caio Brandão é um viajante nos mares da vida.
Caio Brandão é um viajante nos mares da vida.

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