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Foto do escritorHatsuo Fukuda

AFINAL, QUEM FAZ OS FILMES?

Diretor-auteur, escritor, como nasceu Ben-Hur

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Durante muitos anos, a pergunta me assediou, em um intervalo ou outro das sessões corridas dos cinemas de antigamente. Hoje, bocejo ao pensar no assunto. O debate se assemelha ao dos criacionistas versus evolucionistas, que assolou o mundo algumas dezenas de anos atrás (Alguns amigos me sussurram, das trevas onde vivem, que este ainda é um debate atual). E como alguns criacionistas que, por leituras bíblicas, conseguem datar o momento exato da criação do mundo, os criacionistas cinematográficos também conseguem detectar, em um minucioso estudo de antigos fotogramas e diários arcanos, o momento exato em que o filme se criou.


Pode-se dizer: Fiat lux. E fez-se a luz, e se separou o dia da noite, e surgiu o claro e o escuro, e desde então os deuses da tela nos seguem em todos os momentos da vida.


A versão mais difundida do criacionismo é aquela do auteur. Como toda religião laica, copia as estruturas das antigas e mais respeitáveis religiões já estabelecidas na praça. Tem sua língua própria (como o latim, conhecido somente pelos iniciados), suas escrituras sagradas, reveladas apenas aos iniciados, e seus profetas, adorados pelos crentes ao redor do mundo. Nesta versão criacionista, o auteur é o diretor.


Outra versão, tão fantasiosa quanto a anterior, é difundida por Gore Vidal. O verdadeiro auteur é o escritor. Deixemos de lado o fato que Vidal é um escritor diretamente interessado em puxar a brasa para sua sardinha. Com sua verve característica, Vidal diz que, em sua fase áurea, a Hollywood dos anos 30 e 40, o diretor era o cunhado. Os ambiciosos tornavam-se produtores, os belos tornavam-se estrelas, e o homem de talento tornava-se escritor (Isso, decididamente, não se aplica a gente como John Ford). O roteirista era o verdadeiro autor do filme, segundo Vidal.


Neste artigo ele conta como se fez Ben-Hur, em 1959 (Na Netflix há um remake contemporâneo). O filme estava empacado; a MGM estava trabalhando há dois anos na produção e as filmagens iriam se iniciar. Três roteiros já haviam sido escritos, e não se via solução para o impasse. Vidal foi chamado para resolver o problema.


Todos sabem da história. Ben-Hur (Charlton Heston) e Messala (Stephen Boyd) eram amigos de infância. Messala retorna a Jerusalém como comandante das tropas romanas e pede a Ben-Hur que o ajude na romanização da Judeia. Ben-Hur recusa, eles discutem, e, em razão desta disputa política, seguem-se três horas de filme. Non sense, mesmo nestes tempos terraplanistas que vivemos. Para Vidal, o enredo era, basicamente, absurdo. Qualquer tentativa de lhe dar nexo destruiria sua integridade. Mas para que um filme seja assistível, é necessário que os personagens façam algum sentido do ponto de vista psicológico.


Gore Vidal, um homossexual assumido (e um conhecedor profundo da antiguidade greco-romana), sussurrou a solução: os personagens, quando jovens, eram amantes, e quando Messala propõe a retomada do antigo caso, Ben-Hur o rejeita. Messala fica furioso, e a vingança de morte é a solução clássica. Trata-se de uma guerra entre ex-amantes, enfim. William Wyler, o diretor, ficou escandalizado. Vidal se propôs a escrever de modo a apenas sugerir o caso. Somente os entendidos compreenderiam, e os demais achariam sua própria explicação, qualquer que fosse, para a história.


Diz Vidal que somente a Boyd foi contada a solução, e que, como bom ator, atuou de acordo. Charlton Heston, homem à moda antiga (macho com H), não teria ficado sabendo da justificativa. Assim, nas duas cenas iniciais em que interage com Ben-Hur – o ponto de partida da história -, Messala o olha com olhos de um homem faminto que observa uma suculenta picanha na grelha. Charlton Heston, com a sua inocência wasp (ninguém mais branco, anglo-saxão e protestante), contribui para tornar a história mais divertida. Seu desconhecimento faz a alegria do mundo gay desde a estréia do filme.


Concluo que quem faz os filmes é quem conta a história por último. No caso, Gore Vidal.


Ben-Hur salvou a MGM da ruína. Um espetacular sucesso de bilheteria, foi indicado para 12 Oscars, e levou 11, inclusive o de melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor ator coadjuvante, em 1959. Provavelmente teria levado o de melhor roteiro adaptado, não fosse a controvérsia quanto à autoria, que no filme é creditado ao primeiro roteirista. De qualquer forma, o filme hoje, é indissociável de Gore Vidal. A espetacular corrida de bigas é até hoje copiada em Hollywood. Se você se interessar pelos antigos e mais civilizados tempos da Grécia e Roma, os romances históricos de Gore Vidal estão disponíveis em português. Recomendo Juliano (este sobre o imperador romano) e Criação. O ensaio “Quem faz o cinema”, encontra-se no livro “De fato e de ficção – ensaios contra a corrente”, editado pela Companhia das Letras.



Citei muitos filmes. Se você estiver interessado, acesse o Just Watch. Nele você vai encontrar todos eles. Quanto aos livros, estão sempre sendo editados e reeditados; você os encontra nas melhores casas do ramo.

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