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Foto do escritorHatsuo Fukuda

ANO NOVO VIDA NOVA

Republicando


Hoje eu sou o meu avô, vagueando por uma infância há muito distante...


Imagem de Hatsuo Fukuda


Na minha memória, sempre foi um velho silencioso. Eu o via, aqui e ali, sempre solitário, nunca falando com ninguém. Sua voz, lembro-me de ouvi-la em suas orações no pequeno oratório que todas as famílias japonesas tinham antigamente, na qual eram depositadas diariamente porções de arroz e outras comidas que eram servidas aos familiares falecidos (sempre uma pequena porção era separada em pequenas tigelas de metal e colocadas no oratório) e onde ele acendia ritualmente o incenso diário.

No quarto ele guardava uma pequena cartola, de 125 litros de cachaça, para seu consumo pessoal – somente ele a bebia – renovada anualmente. Em um determinado momento o médico o proibiu de beber, medida que ele aceitou estoica e silenciosamente, como em tudo. Permaneceram as orações e a depressão.


Meu pai, anos depois, esteve em Kumamoto, cidade onde nasceu e de onde saiu aos seis anos de idade para a grande aventura no distante país tropical. Foi até o cemitério – devia ser a última lembrança da cidade, a despedida aos ancestrais falecidos antes da viagem – mas não conseguia localizar o túmulo da família. Perdido – é um cemitério imenso e antigo – lembrou-se de ter se escondido de brincadeira em um tronco de árvore morta, próximo ao túmulo. Localizou alguns troncos de árvores, e próximo – voilá – estava o túmulo familiar.


Essa devoção aos mortos, que é uma característica da sociedade japonesa (pelo menos era), em meu avô era marcante. Ele próprio desenhou o túmulo no qual seria enterrado com sua esposa, em Catanduva. E, ao partir para um novo mundo, seu último gesto foi se despedir de seus ancestrais, os quais nunca mais veria.


Deve ter sido difícil, muito difícil. Meu pai contou-me que a família havia se mudado mais de quinze vezes antes de se estabelecer em Catanduva. Vários primos mais velhos ostentavam em suas certidões de nascimento cidades pequenas, que na época mal seriam vilarejos, mostrando quão difícil foi a vida daqueles pequenos Odisseus no novo mundo. “Por quê se mudavam tanto?”, perguntei. A resposta: “Não dava certo naquele lugar, a gente ia embora.” E assim se passaram quase vinte anos sem pouso certo, até o estabelecimento em Catanduva. Lá se fixaram, pelo menos durante uns quinze anos, até que as exigências da vida os levaram para outra diáspora: alguns para Curitiba, a maioria para São Paulo, onde havia dinheiro e empregos. Hoje seus netos e bisnetos estão espalhados pelo Brasil.


A liderança familiar havia passado para o filho mais velho. O pater familias, vencido pela depressão e o alcoolismo silencioso, já vivia com seus ancestrais, aguardando o momento do reencontro com seus pais e familiares que haviam ficado na distante Kumamoto. O trato das flores ainda o atraía, penduradas as orquídeas aqui e ali na imensa varanda e no quintal da casa.

A avó mantinha a ordem na casa. As crianças eram naturalmente atraídas por sua serenidade. Ela se sentava em um banquinho na calçada em frente ao bar que era o sustento da família, os pequenos no chão, como um pequeno bando de bacorinhos, aguardando enquanto ela meticulosamente descascava laranjas, que a seguir tinham os gomos distribuídos, sem a pele, cuidadosamente retiradas, para as crianças.


A nora teve o primeiro filho, e observava uma outra mãe passeando o bebê em um carrinho. A sogra notou e disse:


Nem pense nisso. Não há dinheiro.


E nada mais disse.


Muitos anos depois, quando tive o meu primeiro filho, o primeiro presente que minha mãe me deu foi um carrinho de bebê. Mas a história eu já conhecia.

As crianças frequentavam o clube japonês, onde assistiam filmes e seriados. Ele não, nem a esposa, recolhendo-se cedo. Para ele, aquilo era um simulacro do que havia vivido e um pobre sucedâneo do que estava na memória. Longe, bem longe, na distante Kumamoto, estavam sua vida e os seus pensamentos.

Meu primo, com a morte da mãe, me ofereceu o oratório. Feito pelo avô, desenhado e executado há mais de cem anos. Vou buscá-lo, com o coração na mão. Hoje eu sou o meu avô, vagueando por uma infância há muito distante, um eco daquilo que já fui, conversando com meus mortos, a cartola de licor tropical ressecada, o novo mundo envelhecido, restando só a saudade de mim.

Feliz Ano Novo, velho.

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