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CHICO BRITO DE LACERDA, ADVOGADO DA ROÇA, PRESIDENTE DA OAB/PR, UM ADVOGADO EM TEMPOS SOMBRIOS

Francisco Brito de Lacerda, o Chico Lacerda, se autointitulava advogado da roça. Ele liderou a OAB/PR em tempos de regime militar.
Francisco Brito de Lacerda, o Chico Lacerda, se autointitulava advogado da roça. Ele liderou a OAB/PR em tempos de regime militar.

Chico Brito de Lacerda, ex-presidente da OAB/PR em 1975/77, filho lapeano da Faculdade de Direito da UFPR, se autointitulava “advogado da roça”. Era um homem cordial, educado, político, civilizado, e encarnava, como poucos, as qualidades que notabilizam um advogado: trabalhador incansável, estudioso, homem de diálogo, conhecedor de sua clientela, e, como não poderia deixar de ser, um advogado respeitado por seus pares, que o elegeram presidente da OAB/PR, nos anos em que o país debatia a saída do regime militar.


É um farol civilizatório na província, e sua vida é um exemplo de como proceder, em períodos difíceis. Ele liderou a classe dos advogados, em pleno regime militar, e, graças a suas artimanhas de advogado da roça, trouxe para Curitiba a VII Conferência Nacional dos Advogados, que sinalizou para o país a necessidade de mudança de regime, que aconteceu dez anos depois.


Curitiba, a mais conservadora das capitais do país, graças a ele, inscreveu seu nome na história da redemocratização.


Sua memória aquece a todos nós, advogados em tempos sombrios.


Obrigado, Chico Brito de Lacerda.


(Redação)



DOUTOR CHICO, FRANCISCO BRITO DE LACERDA, UM ADVOGADO COM MISSÃO E PAIXÃO


Inês Lacerda Araújo

 

Antepenúltimo filho de José Lacerda e de Cecília Brito de Lacerda, entre outros quinze filhos, o nome Francisco foi homenagem ao seu tio materno. Nasceu na Lapa em 1923 e morreu em Curitiba, em 2000.


Afável, alegre, otimista, bem-humorado, observador das pessoas, facilmente entrava em sintonia com qualquer um, do mais poderoso ao mais humilde, deixava todos à vontade, entrosados. Qualidades que usou com sabedoria no exercício da advocacia.


Formou-se em 1949 na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Recém-casado, no mesmo ano retornou para a Lapa onde abriu uma porta para instalar escritório na casa anexa ao casarão dos pais. Foi ali mesmo que o casal se abrigou, na mansão onde Chico passara sua infância com plena liberdade e muitas brincadeiras.


Era grande a expectativa pela chegada do primeiro cliente, que não demorou, e vieram outros.  Logo foi possível a mudança para uma casa própria na rua das Tropas (Avenida Manoel Pedro). O novo escritório foi montado na parte da frente, com acesso por escada exclusiva. A placa, com inscrição em arco, anunciava: “Escritório de Advocacia”.


Inventários, solucionar casos, defender acusados, ouvir e aconselhar casais em atrito que acabavam por se reconciliar: era assim, diariamente, o trabalho sério, comprometido com a justiça, com a lei e com a defesa dos clientes. Sua dedicação, estudos e, principalmente o tato jurídico foi recompensado com o aumento da clientela. O pessoal da cidade, os caboclos e os colonos acorriam para a ajuda do doutor Chico, ou “Torchiquinho”, como ficou conhecido.


Os que vinham consultá-lo ficavam em cadeiras no terraço da casa, no jardim da frente, ou aguardando em suas carroças. O advogado ganhou a confiança e, com a boa fama a clientela se expandiu. As mulheres, algumas amamentando, com suas saias longas, o dinheiro guardado junto ao peito, os homens com seus cigarros de palha, eram vistos quase que diariamente esperando ser atendidos. Por vezes dava para ouvir discussões e a palavra firme do advogado acalmando os ânimos.


De fora, nos dias calmos e silenciosos da pequena cidade, o toque-toque na máquina de escrever, rápido, ritmado, era o som do trabalho, da habilidade da escrita que saia sem erro. A fita rebobinada, a página em branco retirada da estante que ficava no canto da sala, era preenchida como que por milagre, sem erro, e com cópias a carbono. Cigarro Liberty no canto da boca, linha após linha, a argumentação clara e convincente estaria pronta.


As filhas mais velhas, nos seus 7/8 anos, respeitavam o silêncio quando próximas à porta ou janela do escritório.


Ao lado da mesinha com a máquina, havia uma estante cuja abertura em forma de gaita fazia um ruído peculiar ao abrir e fechar, que servia para organizar as resmas de papel e as pastas com documentos; nas paredes, além do diploma, um quadro desbotado do Gandhi, vestido como os indianos mais pobres, e um besouro com chifres para dar sorte; para os livros, havia outra estante com portas de vidro; além da escrivaninha principal e de outra para a máquina de escrever, havia um sofá para receber a clientela. Assim era o escritório, simples, o destaque ficava por conta de seu ocupante, a quem ele mesmo se referia como advogado da roça.


Chico Brito de Lacerda era um advogado simples, como simples era o seu escritório.
Chico Brito de Lacerda era um advogado simples, como simples era o seu escritório.

As idas e vindas ao Fórum para acompanhar o andamento dos processos eram quase que diárias. Memorável foi a defesa de Seu Augusto que matara a tiro um soldado em defesa da honra de sua filha. Como defender alguém que atirou e matou à luz do dia, um crime dessa natureza? Na defesa os argumentos jurídicos juntamente com a retórica na medida certa para convencer o júri, deram resultado. Seu Augusto foi inocentado.


A leitura dos jornais diários era obrigatória. Até mesmo do Rio de Janeiro chegavam periódicos, buscá-los no correio com os filhos correndo atrás era um prazer, abrir a caixa postal, recolher a correspondência, para, depois do almoço sentar-se à poltrona, servido de cafezinho e acompanhado com um cigarro, desdobrar as páginas absorto na leitura.


Bem informado, atento aos acontecimentos, respeitado e querido pela clientela, isso talvez o tenha levado a incursionar pela política. Candidatou-se a vereador pelo município da Lapa, foi eleito, ganhou prestígio, o que pode ter levado Ney Braga, recém-eleito governador, a convidá-lo para ocupar um cargo em seu governo. Convite aceito, Chico (não se reconhecia como Francisco) assumiu o Departamento de Assistência Técnica aos Municípios (DATM), então a família se mudou para Curitiba.


Uma nova tentativa de ingressar na política foi frustrada, desta vez candidatura para Deputado Estadual, mas pelo velho MDB de guerra que, no então auge da ditadura militar, dava pouquíssima chance aos filiados. Outros cargos públicos foram na diretoria da Imprensa Oficial do Estado e depois do Arquivo Público. Mesmo após nomeado para a Procuradoria do Tribunal de Contas, não abandonou a advocacia, inclusive com idas à Lapa para atender aqueles que ainda solicitavam seus serviços. Serviços muitos dos quais por amor à causa, realizados sem cobrar honorário.


Nos anos 1975-77 presidiu a OAB do Paraná com coragem, sem arredar o pé dos princípios da liberdade, da lei e da democracia, agindo em defesa de colegas presos pela ditadura militar. Conseguiu eleger Curitiba para a realização, em 1978, da memorável VII Conferência Nacional dos Advogados, presidida por Raymundo Faoro, que teve como tema central a defesa dos Estado de Direito e a restauração da democracia.


A VII Conferência Nacional dos Advogados de 1978 sinalizou o começo do fim do regime militar. Chico Brito de Lacerda, como presidente da OAB/PR, foi um incansável articulador pela sua vinda à Curitiba.
A VII Conferência Nacional dos Advogados de 1978 sinalizou o começo do fim do regime militar. Chico Brito de Lacerda, como presidente da OAB/PR, foi um incansável articulador pela sua vinda à Curitiba.

A cultura jurídica e a experiência de vida caminharam juntas. O gosto pela literatura, com os títulos escolhidos a dedo, romances da literatura mundial, escritores brasileiros, contos, romances serviram de estofo para outra habilidade: a de escritor de crônicas e contos, quase sempre ambientados em sua querida cidade natal, muitos inspirados em fatos de causas criminais em que atuara, além de pesquisa histórica sobre a Lapa, a Revolução Federalista, e a genealogia de sua família. Nas décadas de 70, 80 e 90, essa dedicação e esse gosto pela escrita resultaram em livros com relatos sobre pessoas simples, tipos populares, acontecimentos do dia a dia, personagens que recebiam as cores de sua imaginação, sempre com o toque do humor, da graça, da leveza. “Cerco da Lapa do Começo ao Fim”, “Alçapão das Almas”, “Espada de Mentira”, são alguns dos livros publicados. O alcance de leitores expandiu com a publicação de algumas de suas crônicas na Gazeta do Povo, onde era sempre bem recebido pelo Dr. Cunha Pereira, também conselheiro da OAB.


Faziam parte de sua rotina as visitas à mãe, as andanças pela rua XV para as conversas leves dos sábados de manhã, sempre com espírito crítico, um toque de ironia, observações sobre política e futebol. Antes de voltar para casa no seu Chevrolet 38 azul-marinho, mais tarde substituído por um fuque novinho em folha, ele passava pelo Mercado Municipal para comprar na banca do seu Kurt a manteiga Batavo e o apreciado presunto cru. Cercado de livros e discos, gostava de um bom papo com amigos, sobrinhos e por vezes os chamados tipos populares. Todos eram bem-vindos à sua sala.


Chico Brito de Lacerda, em casa, recebendo o "Esmaga", personagem folclórico da Boca Maldita
Chico, em casa, recebendo o "Esmaga", personagem folclórico da Boca Maldita. Esmaga foi amparado por seus amigos, inclusive Chico. Desaforado, ao receber gorgetas de Cecílio Rego Almeida, Esmaga o chamava de "meu gigolôR", em sua dicção peculiar.

Assim era Francisco Brito de Lacerda, o Dr. Chico. Advogar foi sua missão, investida e revestida pelo caráter firme, personalidade cativante, combatividade exemplar. Um homem de princípios, como se costumava dizer.


Inês Lacerda Araújo, em colaboração com André Lacerda.



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Inês Lacerda Araújo é filósofa, professora e escritora. Mantém ativo o blog filosofiadetododia. Caso queira se desasnar, acesse o blog e leia os inúmeros livros dela, disponíveis na Amazon Books. André Lacerda é Procurador do Trabalho. Ambos são filhos de Chico.

2 comentários


PAULO SALDANHA
26 de set.

Tive a honra e o privilégio de conviver com a impoluta figura d o nobre colega Chico Lacerda. Bons papos e muito aprendizado. Saudades muitas saudades.

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Nordí Braga Gradowski
22 de set.

Parabéns Inês e André pelo belíssimo texto em homenagem ao seu pai. Dr. Francisco, um Paranaense que orgulhou seu estado com uma cultura invulgar!

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