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Foto do escritorTião Maniqueu

COMO AS DEMOCRACIAS MORREM II

O mundo está dando uma guinada para o autoritarismo...



A reforma constitucional de Putin permite que ele se perpetue no poder até o distante 2036. Alguém dirá: não há nada de autoritário nisso, já que a reforma foi submetida a um plebiscito onde alcançou expressiva aprovação e antes havia sido aprovada pela Duma - o equivalente à câmara baixa ou Câmara dos Deputados. Não se engane… como bem destacam Levitsky & Ziblatt em seu livro Como as Democracias Morrem, o autoritarismo de hoje em dia não chega chutando o balde, com tanques nas ruas e tudo o mais. O autoritarismo de nossos dias é insidioso, vai sorrateiramente se instalando por vias aparentemente legais.


Vejamos o caso da Rússia. O povo russo está acostumado às ditaduras. Talvez por isso o consumo de vodca atinja níveis estratosféricos… Ultrapassados os czares e a ditadura do partido no período soviético, agora vê-se diante de um ditador habilidoso, inflexível e determinado. Todos os mecanismos disponíveis para forçar conformidade estão sendo utilizados: Putin aparelhou o Estado, de modo a ter uma Suprema Corte obediente e um Ministério Público subserviente; calou a imprensa, por meio de prisões arbitrárias e processos de indenização milionários que ele sempre vencia; obteve apoio popular por meio de confrontos externos e internos ( a luta contra o chechenos, a anexação da Crimeia, etc ). Trata-se de métodos aparentemente legais que estão à disposição de qualquer dirigente inescrupuloso que domine amplamente o legislativo.


Muito bem, dirá você, mas a população aprovou a reforma por meio de um plebiscito com mais de 77%. Certo… mas a reforma foi oferecida à votação com apenas uma opção: SIM ou NÃO. E a reforma é bem mais ampla que o interesse mesquinho de Putin em permanecer no poder. Há diversos artigos que tratam de questões do interesse direto da população, como o valor do salário-mínimo e o reajuste anual de pensões previdenciárias. Incluiu também aspectos caros aos conservadores, como afirmar o casamento heterossexual. Ou seja, rejeitar a reforma, para não dar a Putin outros anos no poder, seria doloroso para muitos russos. Lembro que Hitler também obtia maciça aprovação em seus plebiscitos...


Aqui em nossa província americana, Bolsonaro procura jogar o mesmo jogo. Nossa sorte é que ele é muito menos habilidoso que seu espelho russo e bem menos dotado intelectualmente. Está mais para um Trump sem poder econômico. Ainda assim, há alguma mente que sabe fazer somas e conjugar verbos por trás do Presidente, pois as manobras “legais” estão aí. Desde o primeiro dia no poder, Bolsonaro busca desacreditar a imprensa ao passo que, por meio do gabinete do ódio e seu potencial multiplicador de fake news, espalha pela rede sua própria narração dos fatos. Por tosca que seja esta narrativa, espantosamente há quem compre. Percebendo que precisa de apoio do legislativo para evitar o impeachment, bem como para bem governar, iniciou o assédio descarado ao centrão, mediante a tradicional distribuição de cargos, orçamentos e emendas. E, como terceira medida, domesticou o Ministério Público Federal pela indicação de alguém supostamente maleável, Augusto Aras, rompendo uma tradição de escolher alguém da lista triplice eleita pela classe. Os efeitos já se fizeram sentir: atuações tíbias em qualquer medida que desagrade o Planalto, manifestações dúbias e um processo de desmonte da Lava-Jato.


Nos Estados Unidos da América, o padrinho de Bolsonaro busca fazer o mesmo. Lá, contudo, ao contrário da Rússia e do Brasil, as instituições são bem mais sólidas. Há um histórico de democracia com mais de dois séculos, ainda que com inúmeras transgressões e descaminhos. Os EUA tem sido um baluarte democrático no mundo, mesmo que apenas internamente, já que sua política externa manda democracia e direitos humanos às favas. Este farol democrático inspira e orienta, de certo modo, democracias em todo mundo.


Também a democracia americana está em risco, cada vez mais solapada em seus mecanismos de freios e contrapesos. Estes fatos seriam impensáveis há dez anos atrás. Não sou fã do american way of life, desprezo o valor que os americanos conferem ao sucesso ( conceito sempre aliado a poder econômico ). Mas reconheço a importância da democracia norte-americana como referência mundial. E temo que, se algum dia a democracia americana cair, o mundo conhecerá um negro período de autoritarismo cujos precedentes remontarão à idade média.

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