DA INCONSISTÊNCIA DA MEMÓRIA
- Melissa Zampronio
- há 15 minutos
- 3 min de leitura
Como confiar na solução se tudo parece um ridículo looping das piores rotinas e dos hábitos mais maliciosos?

Imagem de Geminni IA.
Um relâmpago branco se forma no céu e o mundo parece se dividir em dois: um em que tudo quanto é concreto se congelou e outro, no qual o roteiro mudou e quase todos parecem satisfeitos em viver uma realidade estéril.
A parte estática, em tese, deveria permanecer acessível e coerentemente imutável, contudo, para o regozijo do horror, parece descontínua e quebrada em milhares de pequenas pedras. Tudo despenca e se perde, num movimento irremediável, sobrando apenas a esperança de recuperar as sombras da partida realidade. Do lado de cá, há poucos fios capazes de conectar o pretensamente real com os motivos e fundamentos daquilo que se foi.
Os falsos dias giram com o sabor e o conforto das certezas, contrastando com a necessidade de fuga da amarga constatação de que tudo se despedaça. Soltada a mão das lembranças e também da projeção do real, é possível acreditar na existência de uma alternativa, algo além do descontrole e que acesse a terceira via da consciência. Será?
Existe mesmo escolha para além da fuga por falta de sentido? Uma bomba de perguntas inócuas invade cada milímetro da realidade e colide com a triste recordação de que nem sempre foi dessa forma. Qual o caminho da reversão?
Ainda como poderosa interferência surgem as promessas de normalidade, dadas por quem pensa entender do assunto, para a recuperação de mentes efetivamente esfaceladas.
Como confiar na solução se tudo parece um ridículo looping das piores rotinas e dos hábitos mais maliciosos? O que o turvo rio mal reflete já não mais existe para além da superfície e talvez nunca tenha existido. Novamente, confirmam-se os medos e o desespero de se ter assistido a anos de cenários destruídos que jamais foram verdade. Enquanto isso, a realidade continua se quebrando em duas, avançando e retroagindo incessantemente, na iminência de encontrar uma parede forte o suficiente para impedir esse ciclo. Mas não existe tal obstáculo. E essa é a dolorosa e inevitável conclusão a que os homens, assustados, escrevem em seus diários.
A parte dessa confusa irrealidade, é preciso resgatar o regular funcionamento daquela mente visível à superfície das fatalidades. Mas a que custo? E como? As míopes escotilhas dessa individualidade tolhem, tristemente, qualquer tentativa de ver além da confusão. É, por frio cálculo, o diagnóstico. Deve haver um alinhamento, ao menos, capaz de juntar, mesmo que por alguns momentos poucos, as duas partes fissuradas. Precisa haver, num ponto distante, que seja, pedaços que ainda não se desprenderam, uma fatia de mundo onde os carros andam para frente.
O certo e o errado colidem, fundem-se, separam-se e beijam-se, numa dança natural, indiferentes a qualquer (falta de) continuidade. Em outro momento, os números caem, perdendo seu valor a cada faixa de presente que tocam, reiniciando a contagem para que a lógica possa sempre existir: a bela entropia deste e de todos os outros mundos.
O tempo também parece querer colar as memórias inconsistentes, não tendo sucesso, porém, à medida que se encontra menos poderoso que todos os outros entes do universo.
Batem, num minúsculo mas surdo ruído, os problemas desprezíveis da existência contra a mão espalmada do infinito controle ditado pelos demais. Não é fácil. E no crível mundo de mentiras onde ocorreu o relâmpago responsável pela fissura da realidade, prometem-se destinos diferentes a cada nova escolha, o que, é fato, é bem mais nebuloso que isso.
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