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ENTRISTECER


Serão meus vergonhosos feitos parte deste verdadeiro eu?

Imagem de Geminni IA.



Em terceira pessoa, espio meus próprios movimentos. Vejo o quanto me importo com o ruído lá de fora e fico assustada com a pequenez dessa preocupação. Observo aquela pessoa - meu eu - pegando uma concha e a aproximando do ouvido somente para ouvir com mais detalhes as distorções e os venenos para os quais não deveria sequer gastar alguns segundos notando sua existência. Mas, é claro, essa angústia não existiria caso fosse fácil resolver isso de forma espontânea.


Enquanto meu coração vira tinta líquida - e escorre na tela da existência -, lamento profundamente o tempo desperdiçado nos espinhos que só me faziam feridas. E por outro lado, deixava de beijar as mãos das belezas à minha frente. Que erro; e não para de me doer, talvez nunca pare, porque só a mim atinge como navalha de gelo, sobretudo por ter despendido atenção a tais desimportâncias enquanto sofria… e sofria sozinha sem entender a dimensão do que me machucava.


Quantas vezes tenho ido e voltado ao inferno, como o saquinho de chá que afundamos diversas vezes na xícara com água quente somente pelo hábito da coisa, para recuperar arrependimentos soterrados pela anestesia dos dias e conseguir enfim ver a face desses problemas. Cada sentença que abro e fecho, cada linha finda serve como tapa em meu próprio rosto, seguido pela pergunta “por que deixou toda essa desgraça lhe acontecer?”.


Evidente que inócuo tanto ódio, mas para onde eu o enviarei se não para meus olhos? Isso porque boa parte do mal deitado sobre mim, fiz a manobra de jogar sobre aqueles que nada tinham a ver com meu sofrimento. E é esse escape que se transformou no meu passado, na sua parte mais escura e para a qual mais dói olhar. Em seguida, faço-me outro questionamento: “deveria mesmo contar a você as causas, consequências e fenômenos dessa cadeia toda de acontecimentos de minha história?” Posso explicitar nervos e hemorragias para, logo depois, tentar justificar meus atos, dando-lhe a certeza de que melhorei e que jamais repetiria aquelas violências. No entanto, a quem pretendo enganar, posto que nem a mim essas desculpas convencem?


Está meu espírito, agora, de dedos cruzados sobre essas palavras, sem crer nas coisas que escrevo. “Despertencer-me”, talvez seja essa a boa palavra e o bom objeto para o sentimento desse momento. Todos os alto-falantes desligados, por favor, pois preciso sussurrar ao seu ouvido, com toda a força, essas confissões sujas. Mas, hesitante, não consigo decidir entre dizer ou calar, então é mais fácil perder-me em lágrimas. Quem sabe assim, por pena alheia, eu me livre de mostrar quem realmente sou.


Serão meus vergonhosos feitos parte deste verdadeiro eu? Este aqui, que reside sobre meus ossos e às custas dos meus melhores sonhos, que bebe meu sangue e que comigo partilha as lágrimas de alegria - e também as de tristeza. De todas as tristezas, mas de apenas algumas alegrias. As alegrias, ponho ênfase, costumam voar antes que eu as possa alcançar, pois são quentes. A massa fria dos pesares, de modo diverso, senta-se no chão, imóvel, ali ficando para bem ser observada.


Então, sim, o passado me forma. Ou não, não me forma e dele passo correndo. As duas respostas estão certas e ambas vêm atrás do meu prometido pescoço. Aquela que primeiro me convencer, será a vencedora dessa dura disputa sobre abrir ou não abrir meus tortuosos erros a quem deles precisa saber.


Têm sido dias difíceis, porque todo aquele ruído me tirou um pouco da capacidade de perceber o que de fato se passa dentro de mim. Sequer sei se meu sangue ainda corre ou se sinto fome. Reformulo a pergunta: “é relevante anunciar a você um mal (em verdade, vários deles) que fiz a outrem e sobre o que sofro de vergonha e arrependimento suficientes para não torná-lo a praticar?” Estivesse você na pele de quem foi atingido pelos meus descontrolados agires à fatídica época, seria, por óbvio, a vítima. E pensar nisso torna a situação bem mais complicada.


Um pedido de socorro. O motivo: meus pensamentos insistem em voltar ao que a memória não dissolveu por se tratar de algo que poderia ser evitado. Não necessariamente fiz o que deveria ser feito, porque interferir no corpo e na mente de outras pessoas traz responsabilidades porquanto tem a chance de trazer terríveis consequências.


A mim, restaram os antigos erros e as costumeiras mentiras, cada vez mais sedimentados pelas novas dores. Talvez hoje a solução seja deixá-los ir por meio de palavras, numa esperança dolorida de prosseguir com a vida sem tanto peso.


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