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Foto do escritorHatsuo Fukuda

JAMES BOND NUNCA FOI AQUELE


A Inglaterra, que outrora produziu estadistas e heróis, agora só os vê na literatura e no cinema. O futuro James Bond prosseguirá com a atualização aos novos tempos.


Imagem de wikipedia.

Bond, James Bond. Esta apresentação talvez seja a mais famosa de todos os tempos. Não consigo lembrar de nenhuma outra tão celebrada (está em 22º na lista das cem frases do American Film Institute). Agora que Daniel Craig - um dos melhores Bond da história – talvez o melhor - está se aposentando, surge uma torcida ansiosa para saber quem será o próximo a pronunciar a frase, se é que ela voltará a ser pronunciada.


James Bond é o mais famoso de uma linhagem de personagens literários de escritores que passaram pela Inteligência Britânica, em seus vários ramos. Ian Fleming, o criador de Bond, foi da Inteligência Naval durante a Segunda Guerra. Desta linhagem vieram Richard Burton (não confundam com o ator), Lawrence da Arábia, Patrick O’Brian, John Le Carré.

Fleming vendeu mais de cem milhões de livros, mas a popularidade do autor deriva principalmente dos filmes, que continuam atraindo multidões aos cinemas. Claro, o personagem evoluiu, junto com as plateias. Bond hoje não é o que já foi.

Considerem a cena do jantar, no filme Casino Royale, após o torneio de cartas. Vesper e Bond jantam, quase como um pós-coito bem-sucedido – a tensão vivida naquela noite, idêntica. Quase se ouve o silêncio, quebrado apenas pelos talheres e taças de vinho, como casais antigos que não precisam falar para se entender (eles haviam se conhecido no dia anterior, ou dois dias antes). A extenuante luta contra o vilão produzira uma intimidade que se obtém apenas com uma vida de convivência. No livro, Fleming produz uma tediosa descrição de pratos e vinhos, com a intenção de mostrar a finesse e sofisticação dos personagens, que no filme é simplesmente sugerida. Casino Royale, um livro publicado nos anos 50, literariamente, está a léguas da grandeza de um John Le Carré ou O’Brian. Ou de um Raymond Chandler.

Bond, o do livro, é um personagem que se pretende sofisticado, conhecedor de comidas e vinhos, que dirige um Aston Martin e, como um homem solitário, gosta de comer e beber bem. E comedor, claro. Um chato de galochas pretensioso, desenhado para aqueles que nunca frequentarão cassinos chiques ou saberão harmonizar vinhos e comidas. Mas como sabem os entendidos em cinema, maus livros podem dar ótimos filmes. O clássico exemplo é Casablanca, cujo texto original foi consideravelmente melhorado pelos roteiristas que nele trabalharam. Isso, mais o carisma de Bogart e Bergman, produziu um dos maiores filmes da história. Algo semelhante aconteceu com a literatura de Fleming, com um personagem que, no mínimo, é o retrato da superioridade da raça branca, violento, predador e machista. É o sonho do falecido Império Britânico personificado. Um império que fora batido impiedosamente por alemães e japoneses, e que se especializou em transformar derrotas vergonhosas (Dunquerque, a mais famosa) em vitórias propagandísticas, graças ao gênio de Churchill e sua capacidade mesmerizante de enfeitiçar o mundo.

Bond, originalmente, era tudo isso. Basicamente, uma ilusão. Salvou-o a magia do cinema (a ânsia das multidões por diversão) e o carisma de Sean Connery. Graças a ele, podemos assistir os primeiros filmes da série e fazer cara de paisagem aos inúmeros deslizes do personagem, que seriam inaceitáveis ao pensamento politicamente correto de nosso tempo, aos vilões caricatos, às mulheres coisificadas, os roteiros mancos. Diversão sem culpa.

Bond, com Daniel Craig, transformou-se em um personagem palatável. Um ser humano, enfim. Uma espécie de família substituta foi criada para emoldurar o personagem: M transformou-se em uma mãe severa mas no fundo amorosa. Vesper desperta nele os sentimentos mais profundos e o faz pensar em desistir da vida de lobo solitário. No último filme de Craig como Bond (No Time to Die), a caricatura transforma-se em um ser humano completo. Vilões e personagens de apoio ganharam vida com grandes atores. A história faz sentido. E é claro, os filmes foram entregues a grandes diretores e escritores, como Sam Mendes e Paul Haggis.

Aguardo ansiosamente o novo Bond.


Citei muitos escritores. Melhor assistir os filmes, já que, fontes seguras me informaram, livro é diversão do século XIX. Bond merece uma maratona (está na Amazon Prime para os assinantes). Leio nos jornais que os livros serão relançados, devidamente expurgados para se adequar ao politicamente correto. Bobagem. Bond é fruto do pensamento supremacista branco. Um sonho masturbatório de um império decadente. Bons são os filmes, onde a indústria trata de redesenhar Bond (o último Bond teve a participação de Phoebe Waller Bridge, de Fleabag. Ninguém mais distante de Ian Fleming.). Se quiserem ler bons livros de espionagem, leiam John Le Carré. Se quiserem a coisa verdadeira, Os Sete Pilares da Sabedoria, narrativa em primeira pessoa de Lawrence da Arábia. Mas aqui entramos no território sagrado da grande literatura. Lawrence da Arábia está no patamar dos grandes clássicos, como Júlio Cesar.



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