Crônicas curitibanas
Um personagem de Dickens ou Victor Hugo na minha vizinhança.
Imagem de TV Foco
Faz alguns dias que eu não vejo D. Maria. Para quem não sabe, D. Maria é uma moradora de rua que transita na região da Mateus Leme, vagando mais ou menos entre o Bosque do Papa e a Escola Estadual Ernani Vidal. Por muito tempo ela morou na esquina da Mateus Leme com a Deputado Fernando Ferrari, numa pequena varanda que dá acesso a um restaurante agora desocupado ( há alguns anos foi a Churrascaria Prime ). Aquelas instalações, penso eu, eram luxuosas. Afinal, para um morador de rua, um espaço coberto de 4 metros quadrados que oferecem segurança e proteção dos rigores do tempo equivale a um duplex no Cristo Rei.
Quando a Churrascaria Prime se instalou, D. Maria, lógico, teve que se mudar. Vagou na região pousando em vários pontos. Um canto protegido da Agência do Itaú ( que também não está mais lá ), uma barraquinha de plástico às margens do Rio Belém, a proteção de um telhado que avança até a rua, assim por diante. Ela sabe se virar.
Os moradores da região a conhecem. Muitos gostam dela, outros a toleram. O fato é que, quando está sóbria, D. Maria é bem educada, fala com correção e até cuida da aparência. Busca vestir-se o melhor que pode e, às vezes, até passa um batom nos lábios. Quando bebe, tal qual ocorria com Dr. Jekyll, transforma-se. Dança tresloucadamente, canta alto letras duvidosas, insulta os passantes com alguns xingamentos pesados. Mas isso é raro. Ultimamente o vício parece ter dado um alívio para ela.
É comum vê-la comprando um pão com café na Panificadora Jocasta, o melhor pãozinho da região. Consegue uns trocados e compra a refeição. Quando a encontro sempre dou uma ajudinha, ainda que muitos condenem a esmola. A conversa é sempre a mesma: "Como vai, D. Maria"? "Muito bem, abençoado". Entrego umas moedas, ela agradece.
D. Maria tem família. Pelo que me disseram, a filha já insistiu várias vezes para que ela abandonasse as ruas e fosse morar com ela. Impunha apenas uma condição: que largasse a bebida. Seja porque o vício é mais forte, seja porque prefere a liberdade das ruas, D. Maria recusou. Pra quem tem a estabilidade de casa, cama quente e mesa farta, é dificil entender a opção pelos perigos da rua. Mas ela deve ter razões que não divide com ninguém.
Eu não acho que D. Maria represente o perfil dos moradores de rua. Não é alguém passando por um estágio temporário de necessidade, derrubado por uma rasteira do destino. Tampouco é alguém muito jovem que busca a rua para fugir aos horrores daquilo que chamam lar. E certamente não se confunde com o desespero viciado dos noiados, com seu caminhar zumbificado e o vazio que rouba todas suas memórias. É comum que eu a veja sentada num cantinho, lendo um livro. Nunca perguntei que tipo de literatura ela consome, se é prosa ou poesia, romance ou auto-ajuda. Mas sei que é ela gosta de ler, tal a frequência que a vejo mergulhada nas páginas de um livro. Para quem vive sua realidade, o sonho deve ser libertador.
Um dia, o poder público terá que enfrentar o problema dos moradores de rua. Terá que fugir às medidas paliativas, aos restaurantes ao custo de R$ 2,00 e os abrigos provisórios da FAS. A situação ficará tão grave, que graves medidas serão adotadas. Parece-me um panorama inevitável, cujo horizonte se aproxima, tal o crescimento do número de moradores de rua. Mas acho que estas inevitáveis medidas poderiam poupar a D. Maria, porque ela não é um problema.
Faz alguns dias que não vejo D. Maria. Espero que esteja bem.
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