Grandes viagens começam e terminam com uma caneta-tinteiro.
Imagem deMatthew Z.porPixabay
Um dos grandes prazeres da vida, sem dúvida, é viajar. Eu, infelizmente, na infância e adolescência só me foi permitido viajar na Biblioteca Pública, na seção infantil, primeiro, e, depois, a grande conquista: a seção infanto-juvenil. Em ambas fui um contumaz viajante, seja nas dezenas de histórias de Júlio Verne, ou Conan Doyle, ou da fabulosa coleção Terramarear, onde se velejava pelos Sete Mares em aventuras sem fim.
Assim, não é de se estranhar que, adulto, tenha me apaixonado pelas leituras de Patrick O’Brian, escritor inglês, que tem um fã-clube imenso mundo afora (algo como seis milhões de exemplares vendidos), em grande parte graças à saga dos heróis Jack Aubrey e Stephen Maturin, um, marujo intrépido, capitão da Real Marinha Britânica, outro, um médico de origem irlandesa e catalã, que percorrem os mares lutando pelo Império Britânico durante o período das Guerras Napoleônicas.
Os leitores da saga Aubrey-Maturin (21 volumes), sabem que as fabulosas aventuras ali descritas são, na maioria, histórias reais, por mais aventureiras e inverossímeis que pareçam, fruto de pesquisas de O’Brian em diários pessoais, diários marítimos, cartas e documentos da época. Como suas fontes históricas, O’Brian escrevia a mão, como se pode ver no 21.º livro da saga, inacabado e editado em edição fac-símile. O herói Jack Aubrey, em boa parte das histórias, se espelha na vida do nosso conhecido Almirante Cochrane, personagem que no Brasil (assim como no Peru e Chile), foi decisivo nas lutas pela independência. No último volume, Aubrey, após derrotar as forças espanholas no Peru e Chile, seguia para o Brasil (como Cochrane), onde, provavelmente se uniria às forças imperiais. Infelizmente, a morte de O’Brian nos privou de sua visão aventureira da história da independência do Brasil. Quem quiser ter uma idéia do rumo da história pode ler a narrativa de Cochrane no Brasil, “Narrative of Services in the Liberation of Chili, Peru and Brazil, from Spanish and Portuguese Domination”.
Mas falava do escritor O’Brian. Um leitor desavisado diria que é um escritor de aventuras para leitores velhos que se recusam a crescer. O que não é verdade, assim como seria absurdo dizer que Jane Austen escreveu romances para moças virgens casadoiras. A propósito, um dos volumes da saga Aubrey/Maturin é uma bela homenagem à Austen, retratando com a maestria austeniana a vida rural da Inglaterra no final do século XVIII e começo do século XIX. O pequeno detalhe eletrizante – subjacente ao texto – é que a idílica vida daquela pequena nobreza rural é retratada por um homem que percorreu a revolução psicanalítica, a filosofia existencial, a revolução feminista e sexual do século XX. E viu o nascimento e ocaso das revoluções sociais. E ultrapassou a todas estas revoluções, com o realismo dos velhos guerreiros aposentados da pérfida Albion (O’Brian, assim como John Le Carré e Ian Fleming, foi da Inteligência Britânica).
Bons livros não necessariamente dão bons filmes. Não é o caso de O’Brian. A saga Aubrey/Maturin, filmada por Peter Weir, que no Brasil recebeu o título de “Mestre dos Mares: o lado mais distante do mundo”, estrelando Russel Crowe no papel de Jack Aubrey, e Paul Bettany como Stephen Maturin, é um filmaço. Quando foi lançado recebeu dez indicações para o Oscar (incluindo filme e diretor). Seria melhor assisti-lo no cinema, em tela grande e som adequado – que ressaltariam os dois Oscar que afinal acabou recebendo, fotografia e som -, mas mesmo em tela menor não perde sua espetaculosidade. Eu, leitor contumaz de O’Brian, não consigo mais imaginar Aubrey e Maturin senão nas imagens de Crowe e Bettany.
Mas há os que não aderem incondicionalmente aos heróis Aubrey e Maturin. Suas acuradas e minuciosamente descritas manobras navais entediam alguns. Para estes, sua biografia de Picasso, além de poder ser lida como um romance, nos dá uma visão vívida do mundo e da época em que este viveu, além dos detalhes que fazem a delícia dos artistas e conhecedores das artes. Também a biografia de Sir Joseph Banks, naturalista que presidiu a Royal Society naquela época, nos mostra que os conhecimentos médicos que Maturin demonstra na série estão totalmente antenados com a ciência da época. The Road to Samarcand é uma saborosa história infanto-juvenil, na linha Indiana Jones. Uma delícia para velhos que se recusam a crescer. Finalmente, os romances Testimonies e The Catalans, publicados originalmente em 1952 e 1953, demonstram o escritor perfeito e acabado que era, antes da merecida fama e sucesso que fez anos depois. Destes romances, o mínimo que se pode dizer, é que se trata de literatura à altura dos grandes escritores da língua inglesa, na tradição de Jane Austen. James Joyce não faria melhor. Para nós, a vantagem é que O’Brian não partilhava a megalomania joyceana de destruir a literatura que conhecemos; queria simplesmente nos contar histórias de viajantes. Nos mares ou na vida.
A saga Aubrey-Maturin teve 5 volumes lançados no Brasil. Suponho que estejam disponíveis na Estante Virtual. Os demais 16, em inglês, podem ser adquiridos na Amazon Books. O Almirante Cochrane, em sua “Narrative of Services in the Liberation of Chili, Peru and Brazil, from Spanish and Portuguese Domination”, traça um escandaloso retrato das autoridades governamentais da época. Repugnante, mas nenhuma novidade. O meu exemplar comprei na Amazon. O filme de Peter Weir, “Mestre dos Mares, o lado mais distante do mundo” pode ser adquirido nas melhores casas do ramo.
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