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1989 (ou Era uma vez no Nordeste…) Um conto de Miriam Giro

Miriam Giro é uma londrinense de Sertanópolis que escreve para o dialeticos.com

 

1989 (ou Era uma vez no Nordeste…)


Há muito tempo atrás, quando até geleiras existiam no que hoje é a região setentrio-oriental do país chamado brasil, a espécie humana lutava arduamente por sua sobrevivência.


Naquela região, havia uma tribo de guerreiros ferozes e resistentes que se autodenominavam bléqui-uaites. No ano de 1989 da era pedrozóica, a tribo viu-se envolvida numa acirrada disputa pela chefia de seus domínios, em virtude da morte de seu chefe, ainda jovem e sem prole, durante um embate com um monstruoso quintoanossauro.


Os bléqui-uaites não possuíam código civil ou direito sucessório instituídos. Aliás, para dizer a verdade, até no nível da linguagem oral, a tribo era mais pro precário que pro sofisticado. Na situação criada pela morte do chefe, todos os guerreiros eram candidatos aptos à chefia. E as ambições pessoais entraram em ebulição.


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Havia dois guerreiros que se destacavam dentre os bléqui-uaites: Kóccor e Luilá. Ambos eram fortes e populares em certos grupos tribais. E, após muitos golpes baixos, emboscadas e embates a tacapes, apenas os dois restaram como postulantes ao cargo de chefe da tribo.


Para evitar o derramamento de mais sangue (e o desperdício de mais tacapes), os bléqui-uaites, talvez pela formação de uma conjunção de Júpiter com Saturno na décima casa do mapa astral do brasil, chegaram a um consenso sobre a disputa final pela liderança da tribo. Convencionou-se que os dois postulantes ao cargo fariam exibições de seus atributos à população e aquele que não fosse escorraçado a pauladas pela tribo seria aclamado seu novo chefe.


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Era uma noite de lua cheia. A clareira estava vazia. Os bléqui-uaites, tais como seus primos símios, acomodaram-se nas árvores circundantes. Kóccor entrou, jogando beijinhos às donzelas – se é que as havia. Luilá chegou esbaforido, saudando seus camaradas com o tacape em posição de ataque. O silêncio instalou-se estrondosamente. Os contendores mediram-se, expressões ferozes. Luilá começou a brandir seu tacape, que dominava como ninguém mais da tribo. Kóccor iniciou gesticulando e verbalizando, quando possível, sobre a possibilidade de um futuro maravilhoso para a tribo que aconteceria sob sua chefia. A plateia manifestava preferência ora por um, ora por outro, conforme o espetáculo que cada um estava dando agradasse ou não.


Mas Kóccor, que não sabia manejar o tacape porque sempre estava tomando banho de rio quando os guerreiros saíam em caçadas, começou a perceber que as coisas estavam tomando um rumo desfavorável a sua candidatura. E, como quem não tem tacape caça com capeta, Kóccor, demonstrando intuição surpreendente, lembrou aos gentis espectadores que Luilá, há muitas primaveras passadas, havia deixado de matar uma cabra, que alimentaria metade da tribo, por que ela estava prenha.


Rostos enfurecidos se deixaram ver por entre galhos de árvore. Luilá deixou cair o tacape. Kóccor bateu mais duro ainda, afirmando que Luilá se intitularia senhor de todos os tacapes e de todas as árvores que os bléqui-uaites poupavam para a confecção de futuros tacapes. Instaurou-se um grande burburinho na clareira.


Os dois contendores viram-se cercados pela multidão. Luilá ainda mostrou sua mão, na qual faltava um dedo, que ele havia oferecido à divindade local como penitência por ter poupado a cabra prenha. Em vão… Kóccor havia mexido com o ponto mais sensível dos bléqui-uaites, seus estômagos, bem na hora em que todos estavam acostumados a jantar. Pobre Luilá.


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Lendas antigas narram que Luilá, após ser escorraçado por seus semelhantes, correu tanto, mas tanto, que subiu aos céus e se transformou em estrela, vermelha e muito brilhante, que aparece à esquerda do campo de visão dos homens de bem que olham pra cima em noites de terça-feira e pensam que a vida pode melhorar se as pessoas se livrarem de preconceitos e reconhecerem que as cabras têm direito à vida, estejam ou não prenhas.


Quanto aos bléqui-uaites, os últimos registros que deixaram de sua passagem pelo planeta, descobertos recentemente em um sítio arqueológico denominado Democrátiafinis, dão notícia de que a tribo mudou sua divindade para um tal de “Cruzeiro” e que Kóccor, em companhia de sua consorte, Mis-zélia, e seus filhos, Magri e Gordo, inventaram um tal de Jet/Ski/Titularidade, que transformou os bléqui-uaites em carneiros, aos quais a família dominante negava água e tosquiava periodicamente, que foram definhando, definhando e morreram todos por falta de liquidez.


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Teorias esdrúxulas de cientistas caóticos afirmam que Kóccor e os bléqui-uaites são a prova definitiva de que as baratas descendem do Homo Sapiens. Tais cientistas garantem que o sangue de barata possui a mesma tipagem que se constatou ter sido a dos bléqui-uaites: Zero, RH negativo.


Miriam Giro


Miriam Giro é uma londrinense de Sertanópolis e escreve contos para o dialeticos.

 Miriam Giro é uma londrinense de Sertanópolis e escreve contos para o dialeticos.

 

 

 

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