Deusas, prostitutas, cantoras de cabaré.
Entre as grandes deusas do Olimpo hollywoodiano dos anos 30 – talvez a maior delas – está Marlene Dietrich, aquela dos filmes em que foi dirigida por Josef von Sternberg. Ela fez outros grandes filmes sem Sternberg, claro, mas foi ele que a lançou ao mundo e quem construiu a imagem que conhecemos. Em sua autobiografia, Sternberg diz que “Marlene Dietrich sou eu”. Marlene concordava. Muitos anos depois, ela dizia que simplesmente obedecia suas ordens – e após as filmagens, ia para casa cozinhar para ele. A deusa hollywoodiana do sexo comportava-se, com seu diretor, como se fosse uma humilde camponesa da Bavária. (Embora nunca tenha sido, antes, durante e depois de Sternberg). De qualquer modo, ela gostava de cozinhar para os seus homens. Também.
Em Anjo Azul, filme que a lançou ao estrelato, Dietrich faz o papel de uma cantora de cabaré que destrói a vida do professor Rath. Em Expresso de Xangai, ela é Xangai Lily, uma aventureira, que diz que “foram precisos muitos homens para eu ficar conhecida por Xangai Lily”. Em Vênus Loira, ela faz o papel de uma cantora que se relaciona com um milionário para pagar as despesas do tratamento de seu marido, doente terminal. Sternberg, com cinismo típico, e crueldade ainda maior, coloca, no papel do milionário que compra seus favores, um jovem Cary Grant belo, simpático e rico. Em Desonrada, o primeiro filme que fizeram em Hollywood, Dietrich e Sternberg desenharam o papel arquetípico: uma jovem prostituta das ruas, bela e livre de preconceitos, é recrutada pelo Serviço Secreto para trabalhar em prol do país.
Não à toa, após alguns anos, a dupla se transformou, de salvação da produtora Paramount, em veneno de bilheteria. Afinal, qual mulher na América (e no mundo) dos anos 30 se permitiria acompanhar o marido para assistir a jovem deusa personificar, nas noites de sábado, os sonhos de todo homem bestificado pela rotina e pela pobreza (e põe pobreza nisso, na primeira metade dos anos 30)? O lado negro da Força, que periodicamente assola a América, colocou Dietrich no índex, e, finalmente, separou-a de seu amigo e mentor, Sternberg. O pobre diabo, cujos filmes eram todos uma obra de adoração à deusa germânica do amor e do sexo, nunca mais fez nada que prestasse. Razões? Milhares; a principal delas: nenhuma de suas atrizes era Marlene Dietrich. Claro, não foi a única razão: após Blonde Venus (história original da própria Dietrich, que recebeu 12 mil dólares por isso), os filmes erraram a mão. O gênio se perdera em seu labirinto.
Sternberg, um pobre diabo? Há controvérsias.
Considerem a cena em Marrocos. Tom (Gary Cooper) vai se despedir de Amy Jolly. Ele está de partida para o front e combinam que ele desertaria e fugiriam juntos. O sinal a chama para a apresentação na boate. Ela se dirige até a porta, volta-se para ele, olha-o de cima para baixo e de baixo para cima, e diz: “Me aguarde, eu voltarei”. Conta Marlene que durante a filmagem, Sternberg disse para ela ir até a porta, contar até dez, voltar-se e dizer a fala. Ele não ficou satisfeito com o resultado e disse, zangado: “Se você não sabe contar até 10, conte até 20.” O que ela fez, novamente sem agradar o diretor. A cena foi repetida, segundo Dietrich, “umas quarenta vezes, e no final eu já estava contando até 50”. Quando o filme foi visto, em pré-estréia no Grauman’s Chinese Theater, a cena foi aplaudida pela platéia entusiasmada. O pobre diabo sabia o que a multidão queria.
Dietrich era uma artista consumada, vinda dos palcos de Berlim dos anos 20. Antes de Anjo Azul, ela tinha feito 17 filmes e participado de 26 produções teatrais. Portanto, sabia também cantar e dançar. Neste filme, que a lançou para o estrelato mundial, ela canta “Falling in love again (can’t help it)”, de Friedrich Hollander, canção que ela cantaria durante toda sua vida.
Ela diz, desafiadora:
“Falling in love again
Never wanted to
What am I to do?
Can’t help it”
Só Dietrich, com sua voz sensual, poderia se dar ao luxo de gravar Blowin’ in the wind, transformando uma canção de protesto dos anos 60, de Bob Dylan, em um delicado tema de amor guerreiro. A valquíria tinha se alistado no Exército dos Estados Unidos e dado sua contribuição à luta contra o nazismo. Em sua voz, a canção de jovens sem destino nos anos 60 encontrava a versão de uma guerreira calejada nas guerras do amor e da existência. Pode-se imaginar Amy Jolly cantando a canção nas noites do deserto do Saara, para entretenimento de suas companheiras de jornada e dos homens que elas seguem. Bem diferente de fumar um baseado enquanto divaga sobre as injustiças sociais.
Para os nativos, interessante é ouvir a sua versão de Luar do Sertão, de Catulo da Paixão e João Pernambuco, que ela cantou quando se apresentou no Copacabana Palace, em 1959, disponível no Youtube. A canção é ouvida, na voz de Dietrich, com um silêncio obsequioso que se faz diante de uma oração. Luar do Sertão, na verdade, é uma oração. A deusa sabia.
Josef Sternberg fez sete filmes com Dietrich: The Blue Angel, Morocco, Dishonored, Shanghay Express, Blonde Venus, The Scarlet Empress, The Devil is a Woman, antes da parceria ser desfeita. A filmografia de Dietrich, pós Sternberg, é vasta, e inclui alguns clássicos imperdíveis como Angel, de Ernst Lubitsch, Destry Rides Again, Witness for Prosecution (Billy Wilder), entre muitos outros. Era uma cantora divina. Se existiu uma deusa do amor e do sexo no Olimpo hollywoodiano, foi ela. Nenhuma outra se compara.
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